Há dois tipos de capitalismo: o que gera valor para a sociedade e o que o espolia. Durante as últimas décadas, milhões de pessoas notaram que, apesar de terem trabalho, este é insuficiente para permitir uma vida digna; que o elevador social se desacelerou; que a desigualdade é imensa; que a cobiça parece o verbo mais conjugado pelas finanças, e que a crise climática poderia deixar um futuro abrasado de cinzas para seus filhos e netos. Se a promessa de um amanhã melhor, de uma vida melhor, que tem sido a base do capitalismo, se desvanece, o pensamento do homem entra em um círculo vicioso. Por que me sacrificar? Por onde seguir?
Onde
estão as grandes empresas quando esta pena em cumprimento atravessa o
planeta? Muitas estão brincando em seu jardim de recreio particular. “A
cobiça corporativa está governando este país. E essa cobiça está
destruindo os sonhos e as esperanças de milhões de norte-americanos”,
criticava Bernie Sanders, outro dos candidatos democratas ao Salão Oval.
Em
um mundo (até agora) de fronteiras gélidas, os problemas são jogos de
espelhos entre as nações, e fica descoberto esse relato neoliberal de
que a desregulação traria prosperidade a todos. Nos Estados Unidos, não
por acaso, ao mesmo tempo em que o peso dos sindicatos decaía, os lucros
empresariais, segundo a revista The Economist, passavam de 5% do PIB em 1989 para 8% atualmente.
Esses números procedem do dogma estabelecido em 1970 pelo economista Milton Friedman.
O prêmio Nobel sustentava que o executivo-chefe, por ser um “empregado”
dos acionistas, deve defender seus interesses, dando-lhes os maiores
dividendos possíveis. Esta ideia, que fere como caminhar descalço sobre
vidros quebrados, foi amplificada nas últimas décadas por escolas de
negócios e executivos. O sistema métrico é o curto prazo, o sentido
diário da companhia é um gráfico da Bolsa, e a cobiça, um cassino
global. Friedman respondia assim numa entrevista: “Há alguma sociedade
que você conheça que não se guie pela avareza? Você acha que a Rússia e a
China não se guiam pela avareza? O que é a cobiça? Certamente, nenhum
de nós é ambicioso, só o outro. O mundo se guia através de indivíduos
que perseguem interesses diferentes”. Esta é a linha editorial que hoje
continua escrevendo o destino de centenas de milhões de seres humanos.
Entretanto,
as grandes empresas, sobretudo norte-americanas, sentiram que a mudança
nos dias de hoje é trazida pela ira e pelo descontentamento, porque a
sociedade exige companhias que melhorem suas vidas. Há algumas semanas, o
Business Roundtable (BRT), um dos principais lobbies empresariais
norte-americanos —que agrupa 181 grandes corporações como ExxonMobil,
JPMorgan Chase, Apple e Walmart— lançou uma nota (que aliás não foi
assinada por Blackstone, General Electric e Alcoa) em que redefinia o
“propósito de uma empresa”. Os lucros dos acionistas passam a ser um
objetivo a mais, e fala-se em “proteger o meio ambiente, fomentar a
diversidade, a inclusão, a dignidade e o respeito”. O sentido, agora, é
“criar valor para todos os grupos de interesse”. “Tudo isto terá como
resultado um capitalismo mais sustentável e inclusivo”, afirma María
Luisa Martínez Gistau, diretora de responsabilidade social corporativa
do CaixaBank, da Espanha. O BRT só não explica como conseguirá tão bons
propósitos.
Apesar de tudo, há esperança de que algo mude
na CEOlândia. “É um sinal alentador. Mas só porque demonstra que os
executivos-chefes entenderam a advertência: o pêndulo ameaça oscilar em
direção contrária, e estão tentando controlar sua velocidade”, reflete
Jeremy Lent, talvez um dos grandes pensadores de nossa era. Resta ver se
a sociedade acredita na preocupação verde de uma petroleira como a
Exxon ou do JPMorgan Chase, um banco que se tornou, segundo o BankTrack,
uma rede de ONGs que vigia o comportamento financeiro, um dos maiores
financiadores dos combustíveis fósseis do mundo, ao destinar mais de 196
bilhões de dólares (805 bilhões de reais) entre 2016 e 2018. “Porque a
verdade é que o lobby não se compromete com nada extraordinário, apenas
com o que deveria ser o comportamento básico de uma empresa”, critica
Carlos Martín, diretor do Gabinete Econômico da central sindical
espanhola Centrales Obreras. E acrescenta: “Os membros da BRT têm três
características: são ambiciosos, querem deter o poder e são muito
inteligentes. Viram o que se pode vir por aí com Sanders e Warren na
esquerda do Partido Democrata e reagiram”. E as pesquisas lhes mostram
que é um bom negócio mudar a forma de fazer negócios.
Confiança social
Pode ser, porque as corporações arrastaram a confiança social para a beira do precipício. Aí está o escândalo da Volkswagen, o comportamento do Facebook, a desonestidade do Wells Fargo e a atitude da Novartis. A farmacêutica acaba
de apresentar um tratamento genético (Zolgensma) que poderia salvar
crianças com atrofia muscular espinhal. Mas o preço, segundo o The New York Times,
é de 2,1 milhões de dólares por paciente. Acredita-se que seja o
medicamento mais caro da história. Nem sequer os gastos de pesquisa
podem esconder a insensibilidade de uma empresa que recebe ajudas
públicas. Estas são as empresas que guiarão o século XXI? Essa linha
temporal é um pedestal manchado de vermelho. “O comunicado surge como
uma resposta ao que se viveu nas últimas décadas. Os vícios do sistema
econômico foram tais que os problemas de reputação ameaçam o próprio
valor da companhia”, adverte Emilio Ontiveros, presidente da consultoria
Analistas Financeiros Internacionais (AFI).
A sociedade
ocidental sente que a democracia do acionista falhou. Existem vozes, é
claro, que falam em outro registro e criticam alguns desses “vícios”.
“Há rendimentos decrescentes despedindo as pessoas repetidamente”,
reclama Jeff Ubben, fundador da firma ativista ValueAct Capital, na The Economist. “Não é a estratégia certa para o futuro”, acrescenta. Essas vozes, porém, são escassas, e o passado é outro país.
Logo após da divulgação da nota do Business Roundtable,
outra associação, o Council of Institutional Investors —que representa
muitas das companhias que estão no BRT e alguns dos maiores fundos de
pensão dos EUA—, respondeu com contundência. “Responsabilização de todos
significa responsabilização de ninguém. É o Governo, não as empresas,
quem deve assumir a responsabilidade de definir e abordar os objetivos
sociais com uma conexão limitada ou inexistente com o valor do acionista
de longo prazo.”
As posições estão escritas em pedra. As
empresas fogem, a declaração do BRT não deixa de ser palavras sobre um
papel, a indústria do investimento se fecha no curto prazo, e qualquer
CEO sabe que sem lucros será demitido. Então, o que fazer em um momento
que exige redefinir o sentido das empresas? “Do meu ponto de vista”, diz
Jeremy Lent, “as transformações que a nossa sociedade precisa só
acontecerão quando os Governos forçarem as companhias a terem
obrigatoriamente seus princípios sociais, ambientais e financeiros em
seus estatutos”. Essa “afronta” ao cânone, que Elizabeth Warren também
defende, tem resposta nas páginas conservadoras da economia. “As
empresas não podem —e não devem— assumir responsabilidades sociais
próprias do Estado, como educação, apoio ao bem-estar ou proteção
ambiental. Além disso, a prática demonstra que as companhias são as
instituições erradas para prestar assistência médica e apoio às
pensões”, diz Martin Wolf, escritor e colunista do Financial Times.
Aqui a realidade se choca com esse Lego de vidro que é a natureza humana. “Propósito é o sabor do mês”, ironiza na The Economist
Stephen Bainbridge, professor da Universidade da Califórnia em Los
Angeles (UCLA). E pergunta: “Mas as empresas vão realmente impor um
corte de 10% aos seus acionistas pelo bem dos grupos de interesse?”. E
quando a empresa decidir que o lucro não é mais o seu principal
objetivo, a quem prestará contas? Aos ativistas? Aos políticos? Questões
não resolvidas, mas que revelam as dúvidas de um mundo em trânsito para
outro tipo de sociedade.
Talvez este período esconda uma
terceira via. Os ativos gerenciados sob critérios ambientais, sociais e
de governança (ESG, na sigla em inglês) na Europa, Canadá, Japão,
Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia cresceram de 22,9 para 30,7
trilhões de dólares (de 94,1 para 126,2 trilhões de reais) entre 2016 e o
ano passado. “Se os executivos continuarem agindo em nome dos
acionistas, mas estiverem cientes de que estão preocupados com questões
sociais – o meio ambiente, por exemplo – assim como com os lucros, isso
melhorará as coisas”, admite Oliver Hart, prêmio Nobel de Economia de
2016. “Se, pelo contrário, os gestores dirigem as empresas em função de
seus próprios pontos de vista sobre questões sociais ou a importância
dos grupos de interesse, isso poderia ser um passo na direção errada.”
Outra opção (já que a autorregulação nunca funcionou) seria
criar uma estrutura que vigiasse e obrigasse os diretores a fazerem algo
mais do que superalimentar os dividendos do acionista. Na última
década, cerca de 3.000 empresas tiveram a classificação de B corporations.
Isso significa que seu comportamento ético, social e ambiental foi
certificado pela B-Lab, uma organização não governamental
norte-americana. “A declaração do BRT é uma mostra de que a cultura
empresarial mudou. Mas agora é hora de uma ação coletiva por meio da
comunidade empresarial e dos políticos para trabalhar juntos e superar a
primazia do acionista”, diz Andrew Kassoy, cofundador da B-Lab. O
problema é que poucas grandes empresas assinaram esse protocolo, e a
maioria é de marcas de consumo.
Apesar dos inúmeros
pecados de muitas corporações, mudanças acontecem. Em 25 de agosto,
cerca de trinta grandes companhias (Apple, Amazon, Unilever) deram o
surpreendente passo de publicar uma página no suplemento dominical do The New York Times
comprometendo-se a colocar o planeta à frente dos lucros. “É uma
mudança que vem para ficar e surge de várias formas: a principal é que o
contrato das empresas com a sociedade está sendo reformulado”, analisa
Antoni Ballabriga, diretor global de Negócios Responsáveis do BBVA. E
avança: “As empresas precisam se molhar mais e ver onde podem aportar
maiores capacidades e gerar mudanças sistêmicas; precisamos passar das
declarações para a ação”.
O executivo sabe o preço de
decepcionar. O caso Villarejo —um escândalo de espionagem comercial
envolvendo o BBVA na Espanha— teve impacto na reputação da sua
instituição, que agora “enfrenta a necessidade de uma mudança radical em
sua política de geração de lucro e, principalmente, de uma limpeza de
imagem para aliviar os efeitos prejudiciais de sua imputação”, segundo
Miguel Momobela, analista da corretora XTB. A colisão entre a ética e os
lucros talvez seja o que o mundo precisa. Que ecloda a faísca, que o
fogo se acenda; que escutem. “Dar rentabilidade aos acionistas é uma
condição necessária para ter sucesso nos negócios no século XXI, mas não
suficiente”, indica o economista José Carlos Diez, lembrando que “as
empresas devem incorporar à sua estratégia cumprir os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e isso deve ser liderado
pelo presidente e seu conselho de administração”.
Acender o pavio
No
setor financeiro —talvez aquele com mais casos de comportamentos
desonestos— esse fogo não arderá. Nem sequer os fundos mais ativistas
parecem dispostos a acender o pavio. “Queremos promover mudanças nas
companhias, não puni-las por suas atividades”, diz Matt Christensen,
chefe de investimentos da gestora AXA Investment Managers. É o
pensamento que une as principais praças financeiras do mundo. No
presente ou no passado. “Napoleão disse que em ‘política os males devem
ser remediados, não vingados’, e acredito que o mesmo deve se aplicar
aos negócios”, afirma por e-mail Harald Walkate, diretor de ESG da
Natixis Investment Managers. “É algo com o que os gestores interessados
em investimentos socialmente responsáveis têm lutado. Eles trataram de
identificar irregularidades ou práticas pouco éticas nas empresas e as
enfrentaram, por exemplo, através de desinvestimentos (exclusões). Mas
geralmente não é fácil saber o objetivo dessas ações. Influenciar o
comportamento da empresa (remediar) ou punir as empresas (vingança)?”
Talvez outro verbo: pressionar.
A Amazônia tem queimado como capim seco, e algumas gestoras, empresas e fundos de pensão deixaram de comprar títulos brasileiros.
Na
última quarta-feira, 230 fundos de investimento internacionais que
juntos administram 16 trilhões de dólares (cerca de 65 trilhões de
reais) –valor equivalente a cerca de nove vezes o PIB do país em 2018–
publicaram um manifesto, colocando mais pressão para que o Governo brasileiro apresente medidas efetivas para proteger a floresta amazônica e deter o desmatamento.
Uma tragédia planetária com a qual o presidente Jair Bolsonaro
lidou de forma inepta. Punição ou pressão? Responsabilidade. Fabio
Alperowitch, fundador da corretora Fama Investimentos, de São Paulo, diz
que é sua obrigação, como brasileiro, dar relevância ao aquecimento
global, “um assunto que tem pouca importância por aqui”. De fato, sua
empresa não investe em companhias que fazem negócios com a Amazônia e
nem naquelas que estão “relacionadas a agressões ambientais”. Talvez
seja um dos poucos casos em que a palavra “fronteira” tem uma bela
acepção.
Longe das florestas que hoje lembram a tristeza
de um sicômoro, algumas das maiores gestoras de fundos do planeta, como a
BlackRock, que administra seis trilhões de dólares (24,6 bilhões de
reais), quer que os investidores e as empresas entendam um mundo
diferente. Seu presidente, Larry Fink, insistiu em que o propósito de
uma companhia deve ir além dos dividendos de seus acionistas. Um vento
jovem sopra pelos galhos do sicômoro. Os millennials – que já
são 35% dos trabalhadores – não querem trabalhar em empresas nas quais a
fome ética seja sua razão social. A idade promove a mudança. Um
trabalho da consultoria Gallup revelou que menos da metade dos jovens
norte-americanos apoia o capitalismo. E “em geral preferem trabalhar em
empresas com um forte compromisso social”, diz Jason Dorsey, pesquisador
do The Center for Generational Kinetics. Embora também existam
contradições. “Entre dois produtos ou serviços iguais, se o preço do
comprometimento for 10% superior ou mais em comparação com o de menor
responsabilidade, eles escolherão o mais barato”, esclarece o analista.
A
sociedade começa a entender que as empresas são elas: as pessoas, e não
os computadores, não os robôs, não a tecnologia. No ano passado, os funcionários do Google obrigaram
a companhia a parar de fornecer ao Pentágono um sistema de inteligência
artificial que usava em ataques de drones. E também vetaram um contrato
de 10 bilhões de dólares destinado a transferir grandes quantidades de
dados do Departamento de Defesa para um sistema de armazenamento na
nuvem.
Enquanto isso, os trabalhadores da Amazon
monitoram a relação de Jeff Bezos com as empresas petrolíferas.
Novamente a fronteira, novamente a mudança. “As empresas perceberam que
existe um movimento da sociedade civil e se alinharam a ele; tenho
minhas dúvidas se o fizeram com sinceridade ou como estratégia de marca.
Porque às vezes não convence: se você é uma empresa petrolífera e agora
está preocupado com o bem-estar ambiental...”, avalia Federico
Steinberg, pesquisador principal do Real Instituto Elcano, de Madri.
Mas
é aí, na crise climática, onde parece que as corporações estão dando
mais do que se esperava. Cerca de 25 grandes companhias, analisa a The Economist,
incluindo quatro gigantes tecnológicas, se opuseram publicamente à
retirada dos EUA do Acordo de Paris. Globalmente, 232 empresas cuja
capitalização supera os seis trilhões de dólares se comprometeram a
reduzir suas emissões de carbono, em linha com o objetivo de limitar o
aquecimento global a menos de dois graus. Sem dúvida, se esse problema
fosse um estilo de pintura, seria o tenebrismo de Caravaggio. Porque o
homem pode sobreviver à peste, às guerras, às fomes, às crises
econômicas, mas não à perda das terras férteis ou de um clima habitável.
Jeremy Lent argumenta que precisamos de uma “civilização ecológica”, é a
única maneira de evitar o “desastre”.
Mudanças sociais
É
impossível explicar como chegamos até aqui sem algumas das piores
características do ser humano, sem a obsessão do materialismo e sem a
tirania do crescimento dos lucros. Um credo importado do pensamento
econômico anglo-saxão e repetido nas mesas dessa fábrica de diretores e
líderes que se supõe que sejam as escolas de negócios. “Instituições que
tendem a ensinar que a maximização dos dividendos do acionista é o
único valor que importa”, critica Martin Parker, professor de economia
inclusiva da Universidade de Bristol (Reino Unido) e autor do livro Shut Down the Business School
(“fechem as escolas de negócios”). Um título injusto? “Acredito que a
culpa é mais de algumas escolas de economia do que das escolas de
negócios”, diz Antonio Argandoña, professor do IESE, uma escola de
negócios ligada à Universidade de Navarra (Espanha).
O
relato chega ao começo. A voz de 181 corporações norte-americanas que se
comprometem a mudar se fez ouvir. A sociedade civil, os reguladores e
alguns políticos falam claramente: devem se evolver mais em um mundo com
enormes desafios. A crise climática, a desigualdade, as pensões, a
automação do trabalho, as consequências éticas da inteligência
artificial. Há esperança. “A conversa está mudando, e isso é bom”, diz
Ramón Pueyo, chefe de sustentabilidade da KPMG. Há desalento. “Se você
busca grandes mudanças sociais, não acredito que estejam nos líderes das
corporações. Elas não virão daí. As empresas precisam dar lucro. Se não
o fizerem, não existem e não podem servir a nenhum tipo de propósito. É
o que Milton Friedman tratava de dizer”, comenta, no The New York Times, o colunista Andrew Ross Sorkin, um dos criadores da série Billions.
Os lucros talvez sejam fundamentais, mas sem transmitir um propósito
social será mais difícil alcançá-los. Um planeta, principalmente jovem,
quer outras corporações. Ou elas escutam ou muitas em breve serão a
imaginária paisagem de uma lembrança.
conteúdoMiguel Ángel García Vega
Madri
El País
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