Sim, é verdade: Sérgio Moro está coberto de razão. É
preciso reconhecer que acertou em cheio. Não há o que discutir sobre uma
de suas mais recentes declarações. Sobre o pensamento que generosamente
compartilhou com a plebe que refocila dez degraus abaixo do pedestal
onde é adorado diuturnamente e iluminado pelos holofotes midiáticos que
delineiam sua silhueta em contraluz.
O juiz da 13ª. Vara Federal de
Curitiba falou com exatidão e as evidências a respeito se amontoam
lubricamente umas sobre as outras, a saber:
Moro tem razão porque a ministra Rosa Weber, ao
julgar a AP 470, o chamado Mensalão de Bob Jefferson, condenou o
ex-ministro José Dirceu sem provas, essa bobagem garantista que tanto
atravanca o devido processo legal. Ela explicou que mandaria o réu ao
calabouço mesmo não dispondo de provas porque a literatura permitia que
assim o fizesse.
Moro está certo porque o Ministério Público Federal,
maravilhando a ralé com seu sinistro pauerpointe, igualmente denunciou
Lula dispensando a tal abobrinha das provas.
Moro foi ao alvo porque uma presidente da república
sofreu impeachment sem crime de responsabilidade, embora a Constituição
estabeleça que, não havendo a prática do delito, o afastamento é
inadmissível. Mas, apesar da lei, dessa forma ocorreu e 54 milhões de
votos acabaram incinerados na pira dos interesses inconfessáveis.
Moro falou bem porque o ministro Teori Zavascki, do
STF, zarpou em férias forenses após receber o pedido de remoção de
Eduardo Cunha da presidência da Câmara. Inabalável, bronzeou o crânio e
retornou como se vivêssemos em plena modorra institucional, embora
Cunha, abusando de seus poderes, tramasse abertamente a derrubada do
governo constitucionalmente eleito. Placidamente, sentou-se mais cinco
meses de 2016 sobre a decisão que poderia ter tomado em 2015.
Moro foi certeiro porque um ex-presidente da
República, de forma inédita na história do país, foi arrancado de casa e
conduzido coercitivamente à PF por um pelotão de stormtroopers que
desembarcaram em São Bernardo como se estivessem no teatro de guerra da
Síria. Candidamente informou-se que a operação deveria servir para
“protegê-lo”. Lula nunca se negou a prestar esclarecimentos e poderia,
intimado, ir até a delegacia com as próprias pernas. Mas disso não se
cogitou. Alguém sugeriu que, se assim fosse, não haveria espetáculo mas,
claro, deve ser somente mais uma insinuação maldosa.
Moro atingiu o alvo porque em Pindorama dá-se uma
esquisitice que nos torna ainda mais peculiares sob a visão do mundo
exterior: aqui apenas são perseguidos, enjaulados e condenados – nessa
ordem mesmo, a jaula frequentemente antes da culpa – os habitantes de
certo lado do espectro político. Os demais, jamais. É o direito penal do
inimigo, dizem por aí.
Moro afirma com conhecimento de causa porque o
ex-ministro Antonio Palocci, casualmente às portas das eleições
municipais, acabou na prisão. Teria recebido propinas, embora delas não
houvesse comprovação. Conclui-se então que Antonio Palocci foi preso,
bizarra e oficialmente, por falta de provas.
Moro está bem fundamentado porque outro ex-ministro
de Estado, Guido Mantega, foi buscado pela PF no interior de um
hospital onde acompanhava cirurgia da esposa doente. E, também,
certamente por coincidência, à beira da eleição.
Moro foi verdadeiro porque um magistrado vazou
ilegalmente aos seus parceiros na mídia gravações de conversa entre um
ex-presidente e aquela que era, então, presidente da república. O
vazamento provocou orgasmos múltiplos na Rede Globo e levou o Jornal
Nacional ao nirvana. O doutor Zavascki resmungou que aquilo era uma
barbaridade mas o troço caiu em exercício vencido. E tudo ficou como
antes no quartel de Abrantes.
Moro obrou bem porque acórdão de setembro do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF/4a.) diz que sim. Que é
assim mesmo. Que é preciso fazer olho branco para algumas leis
inoportunas e, cá entre nós, francamente enfadonhas.
É por tudo isso que Moro tem razão quando afirma
que “estamos em tempos excepcionais”. Impossível discordar. São tempos
que, cada vez mais, assemelham-se ao período que medeia entre 1964 e
1985, o do culto à excepcionalidade. Pós-1964, exaltou-se o excepcional.
Tempos excepcionais impunham legislação excepcional. De exceção. Leis e
atos excepcionais, entre eles o Ato Institucional no. 5. Lá como cá,
tribunais abençoaram o golpe, chamando-o “democracia”. Era preciso,
então e agora, maquiar o Abominável, trajá-lo com decência e alguma
elegância, banhá-lo na liturgia, torná-lo asséptico e tragável. O que se
fez. O que se está fazendo.
Tudo porque golpes no Brasil não abdicam da
formalidade, talvez legado do nosso bacharelismo atávico. Devem ter uma
aparência respeitável. Sob o golpe, ocorre um enaltecimento à superfície
do fenômeno, mascarando-se sua fachada com as cores da legalidade. O
que acontece através de palavras, normas, ritos. Servem para negar sua
essência através de uma casca que tem tanto de frágil quanto de
ilusória. Seria como usar o mais fino papel laminado, a mais bela caixa e
a fita com o laçarote mais vistoso para acondicionar um peixe podre.
Com o tempo, o conteúdo vence o continente, rompendo o envoltório,
revelando sua natureza e esparramando no entorno o asco indefectível da
sua podridão.
Ayrton Centeno
Brasil 247
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