Em junho de 2013,
agentes do escritório de cibercrimes do FBI, em Nova York, investigavam a
venda de drogas na internet quando perceberam algo anormal em um dos
computadores. Era o endereço de IP do servidor do Silk Road, um
gigantesco mercado ilícito na Deep Web, encontrado depois que um usuário
alertara, num fórum, que o número estava vazando. O servidor oculto
remetia ao Thor Data Center, em Reykjavik, na Islândia. Depois de
cruzarem o oceano, os investigadores retornaram trazendo em mãos seis
meses de logs (registros) do sistema. O
conteúdo era explosivo: permitia visualizar todos os computadores que
se conectaram ao servidor naquele período. Em uma criteriosa análise, o
FBI descobriu que um canal específico era usado para uma conexão
criptografada. Nela, os administradores iniciavam o login. Para surpresa
geral, uma dessas conexões vinha de um café em San Francisco, na
Califórnia. Dali operava o suposto administrador do e-commerce de
abrangência global que já havia movimentado US$ 1,2 bilhão. Jovem,
nascido em uma família bem estruturada, pós-graduado e seduzido por
ideais libertários, Ross Ulbricht era uma figura cultuada na Deep Web.
Lá, era conhecido como DPR, acrônimo para Dread Pirate Roberts. O
apelido remete a um personagem mítico do filme A Princesa Prometida, de
1987 – um espadachim à la Zorro cujo nome era herdado de geração em
geração. A página que ele administrava havia angariado uma legião de
admiradores logo após seu lançamento, em janeiro de 2011. Primeiro, por
conta do sucesso das transações, que chegava a 99%. Segundo, porque
tinha ares moralistas, proibindo negócios envolvendo fraudes, bens
roubados e ameaças à integridade física das pessoas. Apesar
de ter sido desativado pelo FBI, o site é considerado até hoje o mais
emblemático canal de compra e venda de drogas que já existiu no submundo
da internet. De maneira estruturada, o Silk Road permitia que
traficantes e usuários negociassem livremente produtos como heroína,
ópio, cocaína, maconha, metanfetamina e LSD. Além disso, os fóruns
traziam amplos debates, com dicas sobre uso, misturas e melhores
composições para cada tipo de droga. O anonimato dos negociadores era
garantido por dois mecanismos: a rede TOR, que assegurava a navegação
criptografada e livre de rastros, e o bitcoin, que criou uma rede de
pagamentos anônima. Quando os agentes do FBI
descobriram a localização física de DPR, o administrador do Silk Road, o
site já havia passado da marca de 1 milhão de usuários cadastrados.
Naquele momento, as autoridades policiais estavam em alerta máximo,
procurando infinitas maneiras de fechar o maior cartel online do
planeta. A busca, no entanto, havia começado muito antes. E o caminho
para desvendar quem era a pessoa escondida sob DPR foi uma tarefa longa,
tortuosa e nada trivial. idealismo oportuno Ross Ulbricht cresceu em
Austin, no Texas, nos anos 1990. Filho de um casal de classe média alta
que ganhava a vida investindo em imóveis na Costa Rica, ele não se
diferenciava muito de qualquer rapaz de 20 e poucos anos. Formado em
física, namorava, dirigia um Volvo antigo, gostava de computadores,
surfava e fumava maconha de vez em quando. Em 2009, antes mesmo de
terminar o mestrado em ciência e engenharia de materiais, se desencantou
com a carreira acadêmica. Passou a estudar, por conta própria,
economia, filosofia oriental e drogas psicodélicas. Ulbricht enxergava
na tributação imposta pelo governo uma espécie de monopólio – e, como
todo monopólio, nocivo. Em 2010, ele escreveu em
sua página de LinkedIn: “Quero utilizar a teoria econômica como meio de
abolir a coerção e agressão na humanidade. Para esse fim, estou criando
uma simulação econômica para dar às pessoas uma experiência em primeira
mão do que seria viver em um mundo sem o uso sistêmico de força”. Para
libertários como ele, o uso de drogas é uma escolha estritamente
pessoal. Ao combinar TOR e bitcoin, Ulbricht criaria sua própria versão
da Rota da Seda em pleno século 21. Em vez de ligar o Extremo Oriente à
Europa, como fazia a maior rede comercial do Mundo Antigo, o Silk Road
era um gigantesco mercado online, cuja logística de distribuição
explorava brechas nos sistemas de correio de dezenas de países. A primeira venda foi
feita pelo próprio fundador: 10 kg de cogumelo. Com uma interface
inspirada em gigantes como Amazon e eBay, o Silk Road ganhou
credibilidade. Havia perfis, listagens, fóruns e avaliações das
transações. Em seu Guia do Vendedor, a página
ensinava a enganar sensores de polícia e cães farejadores, além de dar
dicas de como selar pacotes a vácuo. No primeiro ano, a renda média
estimada de Ulbricht, contabilizada a partir de comissões sobre as
vendas de usuários, era de US$ 25 mil mensais – sempre em bitcoin. A princesa e o pirata Seis meses depois do lançamento, o Silk Road saiu das profundezas da
web para ganhar popularidade com uma reportagem publicada pelo site
americano Gawker. Intitulada “O site underground onde você pode comprar
qualquer droga imaginável”, a matéria trazia entrevistas com clientes
satisfeitos com a pontualidade, a praticidade e a qualidade dos
produtos. A comercialização era feita sobretudo por vendedores dos
Estados Unidos e do Canadá. Haxixe e heroína afegãos, maconha congolesa,
cocaína colombiana: as prateleiras virtuais apresentavam uma
farmacopeia de fazer inveja a Pablo Escobar. E tudo com descrição digna
de literatura científica. Em seu auge, quando foi fechada, a página
listava 13.802 anúncios. Depois da reportagem, o
tráfego do Silk Road cresceu tanto que Ulbricht precisou de suporte
técnico para mantê-lo no ar. Com uma comunidade de admiradores espalhada
mundo afora, arregimentar colaboradores não foi difícil. Pessoas com
codinomes como indigo, libertas e batman73 se
tornaram “funcionários” do Silk Road. Nenhum deles se conhecia
pessoalmente; tampouco sabiam suas identidades. Ainda que falassem com o
administrador, ninguém tinha ideia de quem ele realmente era. No começo de 2012, Ross
Ulbricht ainda se identificava em fóruns, conversas e postagens do Silk
Road assinando apenas como “administrador”. Até o dia 5 de fevereiro,
quando perguntou aos membros da comunidade o que achavam do pseudônimo
DPR. Fama e anonimato “O fórum do Silk Road era uma comunidade melhor do que qualquer outra
que eu havia visto na vida real, com muitas vertentes de excelente
discussão política e filosófica”, afirma um usuário não identificado em
entrevista ao cineasta Alex Winters para o documentário Deep Web, de
2015. “Sim, havia transações ilegais, mas era uma verdadeira comunidade
de pessoas com muito em comum”, completa. Àquela altura, o Silk Road já era alvo de várias investigações, sendo
a mais forte uma força-tarefa liderada pelo Departamento de Segurança
Interna dos Estados Unidos (DHS). Baseada em Baltimore, Maryland, a
operação Marco Polo contava com homens do FBI e da agência de controle
de drogas americana (DEA). Na esfera política, os discursos do senador
Charles Schumer, do Partido Democrata, inflamavam a caçada contra o
narcotráfico virtual. Prender DPR e fechar o Silk Road era uma questão
de ordem pública. As investigações, no
entanto, travavam no intrincado sistema de anonimato e criptografia que
protege quem navega pela rede TOR. Encontrar a pessoa que respondia pela
sigla DPR, ou mesmo desvendar sua identidade, eram as tarefas sobre as
quais as equipes de investigações se debruçavam. Andy Greenberg, editor
sênior da revista Wired, frequentou o Silk Road e negociou ao longo de
oito meses uma entrevista com DPR, publicada em agosto de 2013. O repórter acredita que
um dos motivos que pode ter levado Ross Ulbricht a topar a conversa foi o
lançamento do Atlantis, um concorrente do Silk Road que investia pesado
em marketing na internet convencional. Na entrevista, DPR afirmava não
ter fundado o Silk Road – fato que teria cabido ao seu antecessor – e
que ela era administrada por um grupo. Mas, na opinião do jornalista,
que também aparece no documentário Deep Web (disponível
na Netflix), o Silk Road só funcionava porque as pessoas confiavam
plenamente em DPR – ou seja, em Ross Ulbricht. “Ele podia ter fechado o
site e roubado milhões em bitcoin, mas não o fez”, afirma. Encarnando o personagem A derrocada do Silk Road é digna de cinema. Não à toa, os irmãos Joel e Ethan Cohen, autores de clássicos como Fargo e O Grande Lebowski,
compraram os direitos da história para transformá-la em filme. Na
trama, o investigador Carl Force se destaca como peça-chave de um thriller que
não acaba com a condenação de Ross Ulbricht, em maio de 2015. O motivo:
cinco meses depois, o próprio Force acabaria sentenciado a seis anos e
meio de prisão por tentar vender ao acusado informações sobre a
investigação – além de usar o cargo que ocupava para desviar bitcoins e
lavar o dinheiro em sua conta pessoal. A relação entre o
policial e o pirata começou via TORChat. Infiltrado no Silk Road, em
abril de 2012 ele pediu a Ulbricht que desse seu preço pelo site. A
resposta: US$ 1 bilhão. Encarnando a figura de um chefão do cartel
dominicano, o policial usava o pseudônimo Nob para
navegar no Silk Road e dialogar com DPR. Aos poucos, os dois
estabeleceram uma relação de confiança mútua. As conversas, que invadiam
a madrugada, duraram mais de um ano. Àquela altura, Ulbricht
não era uma figura desconhecida das autoridades. Em 2011, nos primórdios
da página, ele perguntara em um fórum da Deep Web se alguém conhecia o
Silk Road – deixando à disposição seu endereço de Gmail. Quando o FBI
identificou os acessos do administrador a partir de um café em San
Francisco, logo ficou claro que Ross Ulbricht poderia ter relação com
tudo aquilo, já que ele morava a poucas quadras dali, frequentava o café
e – agora monitorado – acessava a internet nos mesmos momentos em que
DPR aparecia logado. A polícia tinha certeza de que havia encontrado o
chefão do Silk Road. Mas era preciso pegá-lo com a boca na botija, com a
página de administrador aberta e logado como DPR. Caso contrário, as
provas poderiam se perder em meio à criptografia. No dia 1º de outubro
de 2013, Ross Ulbricht foi seguido até se acomodar numa mesa próxima da
parede na biblioteca pública de San Francisco. Quando o agente do FBI
que navegava disfarçado no Silk Road deu o sinal de que DPR estava
conectado, um casal de policiais simulou uma briga em sua frente. Num
momento de desatenção, outro agente tomou o laptop ainda aberto e logado
como DPR no painel de administração do Silk Road. Em 2015, aos 31 anos,
Ross Ulbricht foi condenado por tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e
invasão de computadores. Acabou sentenciado à prisão perpétua. Até hoje
ele nega ser a figura por trás da sigla DPR e alega ser vítima de uma
armação.
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