O livro A Resistência rendeu ao escritor Julián Fuks os prêmios Jabuti, José Saramago e o alemão Anna Seghers.
No romance de autoficção, o paulistano filho de argentinos exilados no
Brasil toca em feridas pessoais e sociais ao revisitar o processo de
adoção do irmão em meio à fuga dos pais durante a violenta repressão da
ditadura argentina. O regime deixou milhares de mortos e
desaparecidos no país vizinho e um processo contínuo de exercício de
memória sobre o período autoritário. Já no Brasil, diz o escritor,
impera o esquecimento do passado sem reflexão crítica. "Esse
esquecimento fez muito mal para o país. E chegamos, em 2018, ao retorno
do recalcado. E, de repente, temos de volta o grito pelos militares em
um contexto absolutamente injustificável", afirma. "É um país que
desconhece os riscos dos regimes autoritários, com pouquíssimo respeito
pela democracia." Em entrevista à DW, o escritor fala
sobre os perigos do autoritarismo, a importância da memória e o atual
cenário político brasileiro. DW:Seu livro A Resistência,
que fala sobre memória, política, ditadura e família, recebeu o prêmio
Jabuti na categoria ficção do ano em 2016, poucos meses após o processo
de impeachment de Dilma Rousseff e em meio a uma intensa crise política e
institucional no Brasil. Como é ter um livro com esse título celebrado
neste momento político? Julián Fuks: O livro, de partida, não tinha sequer o nome A Resistência,
o título era outro. Com esse título, naquele contexto, o livro foi
recebido como um comentário sobre o presente que ele não se propunha a
ser. No entanto, trazia uma reflexão sobre qual é a militância possível
hoje, em oposição a uma militância do passado. Não traz nenhuma
resposta, mas indagações: como reagir diante das opressões que
permanecem no presente, que se replicam e ganham novas formas? Nada
disso é muito explícito, mas me parece uma questão que subjaz a toda a
narrativa. Para mim, foi quase como um convite a uma tomada de posição
como autor, não só pelo livro em si. E resolvi aceitar esse convite. DW:
Ao ganhar o Jabuti, você terminou seu discurso com um "Fora Temer”.
Nesse contexto de crise geral, qual é o papel do escritor? Julián Fuks: O
papel do escritor é o de todo cidadão: se posicionar se julgar
pertinente. Ao mesmo tempo, as aproximações e distanciamentos entre
literatura e política são interessantes de se conceber historicamente.
Há momentos que parecem convocar muito mais os escritores a se
posicionar politicamente e fazer um tipo de literatura que dialoga com
questões políticas e sociais. Há outros em que a literatura tem como
missão primordial discutir suas próprias formas e questões internas. Eu
respeito esses dois momentos. DW: Sua geração,
nascida no início dos anos 80, aparentemente tinha uma relação distante
com a política. Como você analisa o debate político conduzido por essa
geração atualmente? Julián Fuks: Sem
dúvida, tivemos na infância e adolescência uma percepção equivocada de
"fim da história". Isso tudo caiu por terra. Ninguém, em sã consciência,
olharia para a história agora e diria que ela acabou. Sinto que hoje há
uma politização extrema da população, mas sem formação política, feita
de forma visceral. Isso resulta em tomadas de posição muito radicais sem
uma consciência efetiva das consequências. O impeachment [de Dilma
Rousseff em 2016], me parece, teve algo desse fenômeno. O grito que pede
"fora todos os políticos", esse tipo de posição antipolítica me parece a
politização mais alienada nesse momento. E talvez a mais nociva. DW: Não se ouve, em geral, um anseio por mais democracia. Julián Fuks:
A nossa geração veio a descobrir, com um grande susto, a fragilidade da
democracia brasileira. Aprendemos sobre os momentos de ruptura
democrática, mas parecia que vivíamos em um país que tinha superado essa
questão. E, justamente, a deixou para trás sem culpabilizar, julgar ou
conhecer os crimes das ditaduras anteriores. O resultado é um país que
desconhece os riscos dos regimes autoritários, com pouquíssimo respeito
pela democracia e que não se importa em jogar fora, nos momentos mais
agudos, instituições como o voto. DW: Tanto
o Brasil quanto a Argentina viveram em um passado recente períodos
autoritários de ditaduras militares. Você vê diferenças em como cada
país lida com esse passado? Julián Fuks:
É uma diferença abismal entre a Argentina e o Brasil, quase dois polos
opostos na questão de lidar com a própria memória. A Argentina fez um
exercício denso, contínuo, repetitivo até, de reflexão sobre o passado.
Com idas e vindas também no campo jurídico: primeiro responsabilizando e
prendendo militares responsáveis pelos crimes da ditadura. Depois,
quando havia uma virada política, soltando esses mesmos presos e vivendo
uma fase de tentativa de esquecimento. Mas, na prática, o tempo todo
com um olhar lúcido, realista, voltado para o passado, em uma tentativa
de contemplar em várias instâncias: do ponto de vista jurídico,
cinematográfico, historiográfico, literário, tudo isso se conjugando
para lidar com esse passado traumático. No Brasil, pelo
contrário, há a figura psicanalítica do recalque. O Brasil recalca o seu
passado e tenta não pensar nele. Pela saída da anistia ampla, geral e
irrestrita – mecanismo para o fim da ditadura que teve sua importância
naquele exato momento – criou-se esquecimento e uma falsa conciliação
histórica. Esse esquecimento fez muito mal para o país. E chegamos, em
2018, ao retorno do recalcado. Aquilo que as pessoas deixaram silenciado
volta à tona em um contexto de crise como uma reflexão contínua, às
vezes histérica, sobre a situação do país. E, de repente, temos de volta
o grito pelos militares em um contexto absolutamente injustificável. DW: Na sua opinião, o que leva ao desejo de retorno de um governo autoritário? Julián Fuks:
Majoritariamente estamos falando de desconhecimento e ignorância
política. Prefiro acreditar no Brasil como um país que não compreende
claramente a gravidade de uma figura como o [deputado federal e
pré-candidato a presidente] Jair Bolsonaro, por exemplo, e não como um
país com uma quantidade grande de pessoas de extrema direita. A extrema
direita me parece um fenômeno menor, estranho e deslocado nesse país,
que não fala muito sobre a nossa identidade. Só que, nesse processo
massivo de uma política muito mais fundada em factoides e fake news,
acabamos caindo em situações assim. DW: Após o sucesso de A Resistência, você está trabalhando em novos projetos? Julián Fuks: Estou escrevendo A Ocupação, que cria com A Resistência uma
espécie de díptico, em que o apelo fundamental "ocupar é
resistir" ganha proeminência. Os dois livros são formas de pensar como a
política acaba por interferir na vida dos indivíduos. Mas, se antes
havia uma trajetória mais familiar, agora a ocupação em si é de sem-teto
no centro de São Paulo, em um movimento de luta por moradia. A noção de
ocupação se converte em múltiplas, assim como as resistências eram
múltiplas no livro anterior. É a ocupação de moradores sem-teto, mas é
também a escrita como ocupação, como ofício, e também é o corpo ocupado
de uma mulher grávida e uma noção de literatura ocupada pelas questões
do presente, pela política e pelas preocupações sociais. Assim como uma
das formas de luta mais efetivas é ocupar espaços, nesse caso me parece
que a literatura pode se deixar ocupar por alguma coisa que não é tão
semelhante a ela, mas que nesse momento tem uma potência muito
grande.
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