Pela primeira vez na sua milenar história, a Igreja Católica usou o termo LGBT em um documento oficial.
Sínodo é um encontro que reúne representantes católicos do mundo todo para discutir um tema específico, determinado pelo papa. As discussões tratadas pelos religiosos são apresentadas ao pontífice em forma de relatório. Na sequência, ele reflete sobre elas e prepara um outro documento, chamado de exortação apostólica.
Francisco, que no último sínodo convidou os bispos a se debruçarem sobre a questão da família na sociedade contemporânea, desta vez quer um encontro que trate sobre a juventude. E a preparação ocorreu de uma maneira bastante contemporânea: 15 mil jovens de todo o mundo, tanto católicos quanto não católicos, responderam a longos questionários em seis grupos distintos no Facebook.
Além disso, outros 300 jovens, também de várias partes do mundo, foram convidados a debater, ao longo de uma semana em março, presencialmente, em um evento realizado em Roma, o chamado encontro pré-sinodal. Doutorando em ciências sociais da Pontifícia Universidade Gregoriana, o brasileiro Filipe Domingues, de 31 anos, foi um deles.
"O encontro começou com um discurso inicial do papa. Em seguida, os participantes se reuniram em pequenos grupos linguísticos, grupos de no máximo 20 pessoas. Foi assim que respondemos aos questionários e refletimos sobre as questões da juventude hoje", recorda-se ele. "Com base nisto, uma comissão redatora, da qual eu fiz parte, preparou um relatório final."
Este relatório foi uma das fontes utilizadas pelo Vaticano para preparar o documento de trabalho, o Instrumentum Laboris, que será utilizado pelos bispos em outubro.
Acolhimento
O documento foi estruturado em três partes, levando em consideração o que querem os jovens dentro da igreja. A primeira parte é um reconhecimento da realidade da juventude atual. Em seguida vem a interpretação do significado dessa realidade e, por fim, quais devem ser os caminhos escolhidos pela igreja diante de tal cenário.De acordo com o documento, os jovens de hoje buscam uma "igreja autêntica", que brilhe por "exemplaridade, competência, corresponsabilidade e solidez cultural". A juventude quer uma igreja "transparente, acolhedora, honesta, atraente, comunicativa, acessível, alegre e interativa", "menos institucional e mais relacional, capaz de acolher sem julgar previamente, amiga e próxima, acolhedora e misericordiosa".
As sondagens pré-sinodais também identificaram uma aversão que a igreja provoca em muitos jovens, que apontam a instituição como algo que "incomoda e irrita". Os escândalos sexuais recentes, com casos de pedofilia, foram apontados.
Para o Vaticano, sete "chaves" devem ser utilizadas no acolhimento dos jovens: escuta, acompanhamento, conversão, discernimento, desafios, vocação e santidade.
Questão LGBT
No campo moral, há uma grande distância entre os valores da Igreja Católica e o que pensam os jovens. O documento ressalta que "os ensinamentos da igreja sobre questões controversas, tais como contracepção, aborto, homossexualidade, coabitação e casamento são fontes de debate entre os jovens, dentro da igreja e fora dela".A última parte do documento traz considerações a respeito da inserção e do acolhimento aos homossexuais. E aí está o ineditismo do documento. Ao afirmar que "alguns jovens LGBT desejam se beneficiar com maior proximidade e se sentir amparados pela igreja", o Vaticano usa, pela primeira vez, a sigla preferencial da comunidade gay. No passado, a igreja costumava usar a expressão "pessoas com tendências homossexuais".
Em seu pontificado, Francisco tem buscado um diálogo mais acolhedor. E, não raras vezes, referiu-se a esse grupo simplesmente como gays - em entrevistas e declarações públicas. Nos documentos, a menção passou a ser apenas "homossexuais".
Em coletiva de imprensa realizada no Vaticano na semana passada, o cardeal Lorenzo Baldisseri, secretário-geral do escritório do Sínodo do Vaticano, disse que a escolha pela sigla LGBT foi em virtude de ter sido este o termo mais citado pelos jovens nos encontros pré-sinodais, e seu escritório teria optado por respeitar o trabalho dos jovens.
Um dos relatores do documento pré-sinodal, o brasileiro Domingues, acredita que o uso da sigla é uma questão menor dentro de um contexto mais amplo de acolhimento e de acompanhamento. "Acompanhamento no sentido de que a igreja precisa ir ao encontro das pessoas, da realidade delas, de onde elas estão. Não importa se elas estão seguindo os padrões desejados ou não pela igreja", comenta ele, em entrevista à BBC News Brasil.
"Se é casado, se é divorciado e casado em segunda união, se pode participar disso ou daquilo... Essas respostas antigas é que estão mudando. Acompanhamento é encontrar o espaço de cada um na igreja", diz ele.
"Na minha opinião, o uso do termo LGBT não foi pela intenção de trazer uma agenda para a discussão. Sei que algumas pessoas criam uma teoria da conspiração em cima disso", comenta. "O termo foi usado porque é o termo que os jovens usam, é popular, e é assim que uma comunidade ampla se autodefine. Muda alguma coisa? Muda na ideia de que é uma linguagem mais aberta ao diálogo. Se a igreja colocasse 'jovens que vivem o problema da homossexualidade', por exemplo, já iria apresentar isso como um problema, como uma negativa, fechando o diálogo. A intenção foi usar uma linguagem aberta, de acolhimento. Vejo com naturalidade."
Para o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a explicação está no "realismo pastoral" que Francisco trouxe para a igreja. "Não se trata de mudar os princípios, mas de procurar soluções para os problemas que não estão sendo enfrentados com sucesso. Nesse sentido pode-se entender que textos emanados do Vaticano incluam termos usados no contexto atual, como LGBT e gênero. Isso evidentemente tem um efeito na reflexão e, espera-se. na prática", diz ele, à BBC News Brasil.
"Existe, entre jovens do mundo todo, um desencanto com o modo de vida da sociedade moderna. Muitos movimentos católicos souberam responder a esse desencanto e têm obtido muito sucesso junto aos jovens, reafirmando os valores cristãos tradicionais. Contudo, uma grande parte da juventude está fora desse processo. Não se identificam com os valores hegemônicos na cultura atual, mas também não são alcançados pelas propostas católicas", analisa Ribeiro Neto. "Esse realismo pastoral de Francisco deve direcionar o Sínodo justamente no sentido de falar com esses jovens."
Autor do livro Building a Bridge: How the Catholic Church and the LGBT Community Can Enter into a Relationship of Respect, Compassion, and Sensitivity (Construindo uma ponte: como a Igreja Católica e a comunidade LGBT podem ter uma relação de respeito, compaixão e sensibilidade, em tradução livre) e consultor do Vaticano, o padre jesuíta americano James Martin viu com entusiasmo o documento. "Lembre-se que, até alguns anos atás, nem a palavra gay era usada. Papa Francisco começou a fazê-lo. Agora vemos o termo LGBT", afirma, à BBC News Brasil. "É um sinal claro de que o Vaticano está escutando mais atentamente este grupo de pessoas, respeitando-as como elas querem ser chamadas."
"O uso do termo LGBT mostra que a igreja está ouvindo mais atentamente essa comunidade", prossegue. "Em vez de o Vaticano os chamar de homossexuais ou atraídos pelo mesmo sexo, há um respeito suficiente para que eles sejam chamados da maneira como pedem para o serem. Isso é respeito. Indivíduos e grupos têm o direito de serem chamados pelos nomes que escolheram, e não pelos nomes que os outros decidiram usar."
Sínodo
O sínodo ocorre em outubro. Os bispos convocados, representantes do
mundo todo, devem ser chamados em agosto. Como costuma acontecer, o
Vaticano também convida pessoas leigas que tenham a ver com o tema em
discussão - ou seja, nesta ano, jovens. Essas pessoas são tratadas como
observadoras mas, em determinados momentos da assembleia, são ouvidas
pelos bispos para que eles saibam exatamente como elas se sentem.
Edison Veiga
Milão
BBC Brasil
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