As eleições de 2018 geraram a maior fragmentação partidária desde a
primeira eleição da redemocratização, em 1989. São 30 partidos na Câmara
dos Deputados, e alterações importantes na constituição das bancadas
parlamentares. O MDB, pivô de todas as coalizões partidárias nos
últimos 30 anos, viu sua bancada diminuir de 51 para 34 deputados. O
tradicional PSDB, que detinha 49 cadeiras, foi reduzido a 29 deputados.
Do outro lado, o novato PSL, do presidente eleito Jair Bolsonaro, saltou
de 8 para 52 deputados, com a 2ª maior bancada, atrás apenas do PT, que
alcançou 56 deputados. Esse
cenário fragmentado e de realinhamento partidário exigirá uma nova
forma de coalizão, afirma o cientista político Sérgio Abranches.
Especialista no tema, ele é autor do livro Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro, lançado neste ano e que analisa o sistema político brasileiro desde a proclamação da República. Em
entrevista à DW Brasil, Abranches afirmou que "as coalizões, a partir
de agora, serão mais heterogêneas e difíceis de gerenciar", exigindo
postura mais maleável de Bolsonaro. "Se não houver negociação com o
Congresso, pode haver uma paralisia do processo decisório e uma crise
política", afirmou. DW Brasil: O número de partidos
representados na Câmara dos Deputados saltou de 25 para 30. No Senado,
de 18 para 21. O que essa fragmentação significa para o sistema político
brasileiro? Sérgio Abranches: Estamos
num processo de realinhamento partidário que ainda não se completou. Os
partidos tradicionais perderam densidade na Câmara, e a representação
que eles controlavam foi redistribuída para outros partidos. O PSL virou
a 2ª bancada, puxado pelos votos de Bolsonaro, mas ninguém sabe se ele
vai se tornar um partido orgânico, permanente. Para se ter uma ideia, em
1994, as cinco maiores bancadas eleitas na Câmara controlavam 70% dos
votos. Em 1998, passaram a controlar 78% dos votos. Em 2002 e 2006 esse
percentual ficou abaixo de 70%, em 2010, abaixo de 60%, em 2014 ficou
próximo de 51%, e este ano, em 41%. Nitidamente está havendo uma redução
no tamanho médio das bancadas e um aumento da fragmentação. Há uma
crise da estrutura partidária, principalmente dos partidos tradicionais,
como PSBD e DEM. As coalizões a partir de agora serão mais
heterogêneas, difíceis de gerenciar e forçam a mais negociações,
reduzindo a intensidade das preferências da agenda presidencial. No
seu livro fica muito evidente a participação do PMDB, atual MDB, como
pivô de todas as coalizões desde 1989. Como a diminuição da bancada em
2018 afeta as coalizões? Ele será substituído. O partido
de coalizão do Bolsonaro será o PSL, que tem 52 deputados e
provavelmente terá algumas adesões. O MDB ficou com 34 cadeiras. Ele já
teve 107, em 1994, mas veio perdendo ao longo dos últimos anos. O MDB,
hoje, está do tamanho do PSB, com a 4ª bancada da casa. No Senado, o MDB
ainda será o pivô porque manteve uma representação significativa, e o
PSL fez poucos senadores. Como garantir maioria robusta nesse cenário? É
muito complicado. Bolsonaro vai precisar agregar mais partidos. Ele tem
falado que possui mais de 300 parlamentares consigo, de sete ou oito
partidos. O que está sendo objeto de uma certa confusão é que,
evidentemente, com 10% da Câmara e com 5% do Senado, o partido dele não
tem a menor condição de governar sem uma coalizão. Isso não significa
que necessariamente ele fará uma coalizão distribuindo cargos
no ministério. Há uma bibliografia importante na ciência política
brasileira dizendo que a governabilidade melhora de acordo com a
proporcionalidade da distribuição dos ministérios em relação ao peso dos
partidos da coalizão no Congresso. Bolsonaro afirmou que não vai
repartir ministérios entre os partidos, mas que o fará por escolhas
pessoais. Ele pode fazer esse teste, mas isso nunca funcionou no Brasil.
Será uma coalizão mais temática, puxando para uma agenda mais
conservadora, e uma agenda econômica que consiga certa maioria no
Congresso. A coalizão será montada de maneira diferente. Seu
livro mostra que os presidentes, desde 1988, conseguiram aprovar grande
parte da agenda prioritária nos primeiros meses de governo. Bolsonaro
lida com temas polêmicos, como Estatuto do Desarmamento, maioridade
penal e, possivelmente, a reforma da Previdência. A lógica vai se
manter, ou ele terá mais dificuldade? Essa é uma questão
difícil. Ele já disse que não sabe se algumas dessas pautas serão
aceitas pelo Congresso da maneira que ele está propondo. Por exemplo:
mudar o Estatuto do Desarmamento. Ele tem o apoio da bancada ruralista e
da bancada da bala, mas eu não tenho certeza se a bancada evangélica
vai apoiar suficientemente medidas tão radicais como o acesso à arma ou a
redução da maioridade penal, porque isso é contrário à fé cristã.
Imagino que haja uma negociação dentro da própria coalizão do presidente
eleito e, nessa negociação, algumas medidas serão mitigadas. Uma das
características do presidencialismo de coalizão é exatamente essa: ele
mitiga o radicalismo das propostas. Elas podem ser aprovadas, mas com
alguma redefinição do grau de intensidade. Nessas questões que envolvem
direitos civis e valores, acredito que haverá alguma negociação porque a
resistência será grande. Agora, na pauta econômica, acho que ele terá
mais facilidade. Se ele começar por aí, pode ser que avance com mais
rapidez. Ao longo da história, o presidencialismo de
coalizão tem gerado casos importantes de corrupção e de "toma lá, dá
cá". O sistema está fadado a ser assim? Não. O que
argumento no livro é que a maneira pela qual nós desenhamos o nosso
processo tributário e orçamentário e a centralização dos recursos das
federações na União criam incentivos ao fisiologismo e ao clientelismo,
que acabam levando à corrupção. O controle excessivo do presidente sobre
os recursos dos estados e dos municípios faz com que os prefeitos,
governadores, deputados e senadores sejam demandantes de recursos junto
ao governo federal. A relação que se estrutura na busca por
recursos cria incentivos a esse "toma lá, dá cá", mas não
necessariamente o presidencialismo de coalizão em si. Como você acha que será o relacionamento do Executivo com os estados? São 13 partidos diferentes entre os governadores. Essa
é uma mudança importante. É mais uma marca de uma eleição disruptiva,
que rompeu o eixo que organizava governo e oposição no Brasil. PSDB e PT
disputavam a Presidência, os outros partidos disputavam a coalizão, e
isso definia quem era governo e oposição. Nesta eleição houve uma
ruptura nesse eixo, porque PT e PSDB não estão na Presidência, e também
existe esse realinhamento partidário, que deixou as bancadas com peso
muito parecido no Congresso, que torna essa definição de governo e
oposição mais complexa. O Bolsonaro terá uma oposição dura do PT, Psol,
PCdoB e eventualmente PDT. Está se configurando um novo quadro de
transição, que muda a dinâmica da relação entre Executivo e Legislativo a
partir do ano que vem. Bolsonaro e sua equipe possuem um
estilo por vezes agressivo de negociação, com pouco diálogo. Como esse
perfil se enquadra no presidencialismo de coalizão? Este
será o teste decisivo do governo e da própria democracia, o das
relações entre Executivo e Legislativo. Um presidente que não se dispõe a
negociar com o Congresso. E vale dizer que negociar não é feio ou
necessariamente espúrio. Discutir ideias, fazer concessões na
intensidade das medidas, abandonar algumas coisas, adicionar outras são
negociações políticas legítimas e necessárias. Se não houver essa
negociação, pode haver uma paralisia do processo decisório e uma crise
política. Duas coisas precisam ser consideradas: a primeira é a
experiência parlamentar de Bolsonaro. Apesar de nunca ter tido um papel
de liderança no Congresso, ele teve sete mandatos e conhece bem a
Câmara. Além disso, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, também é
um político experiente, envolvido em muitas negociações no Congresso.
Tanto Bolsonaro quanto Onyx possuem a experiência parlamentar que pode
ajudar na busca de soluções que atendam a agenda presidencial e
respeitem os limites impostos pelo Congresso. Já há uma
resistência contra o governo do Bolsonaro, antes mesmo de ele ter
começado. Haverá uma margem de tempo a partir do ano que vem ou podemos
ter um novo rompimento democrático? Ele terá um ano para
mostrar desempenho e fazer com que a economia dê sinais de
recuperação com a chegada de um novo governo. O primeiro teste será o da
governança e estabilidade. Os presidentes que frustraram o eleitorado
perderam imediatamente popularidade e passaram a ter problemas no
Congresso. Dois deles sofreram impeachment, e um deles ficou com muita
dificuldade, no segundo mandato (o FHC), quando ele desvalorizou a moeda
sem alertar a população e ocasionou a volta da inflação por um
determinado período. Dilma Rousseff frustrou a população logo no
início do segundo mandato, quando fez uma campanha dizendo que não havia
crise, e logo depois revelou-se a crise. Houve um "tarifaço", e o
eleitorado a abandonou. Presidente popular tem força, estabiliza
governança e consegue ter bom desempenho. Agora, se o presidente não
aceita as limitações constitucionais, os freios e contrapesos do sistema
político, há um teste ácido para a democracia. A minha hipótese é de
que não vamos correr esse risco rapidamente. A democracia brasileira
será testada, porque toda a dinâmica que organizou o jogo político nos
últimos 24 anos foi rompida. Estamos navegando em águas desconhecidas.
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