Antes mesmo de ganhar a eleição, Jair Bolsonaro já aparecia em vídeos convocando pais e alunos a delatar professores que promovam, segundo suas palavras, “doutrinação ideológica”. Agora, políticos do PSL incentivam o patrulhamento contra “o comunismo e a ideologia de gênero”. Eleita deputada estadual por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo criou um canal para denúncias contra professores.
Nesta quinta-feira, a Vara da Infância e da Juventude acatou representação do Ministério Público Estadual e considerou ilegal o canal mantido por Campagnolo, determinando também a retirada do ar de vídeos em que ela aparece conclamando pais e alunos a denunciarem.
Não se trata de iniciativas isoladas, pelo contrário. A
pregação contra a suposta sexualização de crianças nas escolas e a
“doutrinação” de esquerda na educação são facetas centrais da campanha
vitoriosa de Bolsonaro, que também estão presentes na estratégia de
mobilização de forças conservadoras e de extrema direita pelo mundo, parte das chamadas “guerras culturais”. Uma semana após a votação, já há sinais de que a Educação será um dos primeiros fronts do bolsonarismo que chega ao poder.
Na
Câmara dos Deputados, na euforia após a vitória do capitão reformado do
Exército, o tema também se moveu. O projeto “Escola sem Partido”, que
veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da
expressão “orientação sexual” nas escolas, foi pautado para ser
discutido em uma comissão especial. A votação acabou, no entanto,
adiada. “Esse tema não é apenas do Parlamento. Ganhou as ruas. É um tema
do Brasil. Pautaremos na próxima semana para debate democrático”,
prometeu o deputado presidente da comissão, Marcos Rogério (DEM-RO).
Os efeitos já são sentidos em escolas e universidades pelo país, que
registraram nos últimos dias episódios de denúncias a professores e
rusgas entre apoiadores e detratores de Bolsonaro. Em Fortaleza, o
professor de história Jam Silva Santos foi acusado de doutrinação após
exibir o filme Batismo de Sangue, baseado em um livro de Frei
Betto sobre a ditadura, a estudantes do ensino médio no colégio Santa
Cecília. Um aluno gravou trecho do filme que parou nas redes sociais,
onde Santos sofreu linchamento virtual sob a alegação de crítica velada a
Bolsonaro. Na segunda-feira, ele foi recebido no colégio com aplausos
dos estudantes, que consideraram injustas as críticas ao professor. Ele
exibe o filme em suas aulas há cinco anos e nunca havia tido problemas
semelhantes.
De acordo com o Sindicato dos Professores do Ceará (APEOC),
os casos de denúncias por suposta “doutrinação ideológica” têm crescido
no Estado este ano. Desde janeiro, pelo menos cinco professores, além
de Jam Silva Santos, estiveram sob a mira de críticos nas redes sociais.
Um deles é Euclides de Agrela, professor de história e sociologia da
Escola Estadual Otávio Terceiro de Farias, em Fortaleza. Uma discussão
entre ele e um aluno, expulso de sala depois de ofendê-lo, foi filmada e
viralizou em páginas de apoio a Bolsonaro, que atrelaram a fala do
professor sobre atitudes “nazifascistas” atribuídas ao ex-capitão à sua
militância pelo PSOL, partido ao qual é filiado.
Agrela admite que se exaltou e teve reação descabida à
confrontação do estudante bolsonarista, mas condena a divulgação fora de
contexto dos vídeos em sala de aula, que lhe rendeu ameaças de morte.
“Tive que sair de casa por alguns dias. Um clima de terror.” O
vice-presidente da APEOC, Francisco Reginaldo Pinheiro, afirma que o
sindicato criou um canal para prestar apoio a educadores vítimas de
intimidação e patrulhamento nas escolas. “Defendemos a liberdade de
ensino. Existem espaços adequados para queixas de pais e alunos. Expor o
professor em rede social é perigoso, coloca sua segurança em risco.
Infelizmente isso está se tornando recorrente por causa da polarização
ideológica motivada pela política”, diz Pinheiro.
Paulo Freire e os grandes males
O plano de governo em educação é considerado vago em vários
pontos como valorização do professor ou reforma do ensino médio, mas a
equipe de Bolsonaro explicita bem suas prioridades. Aponta que “um dos
maiores males atuais é a forte doutrinação” e promete “expurgar a
ideologia de Paulo Freire”, o patrono da educação brasileira, embora
atualmente as bases curriculares tanto do ensino fundamental quanto do
médio não façam referência aos métodos do educador. “A rejeição a Paulo
Freire é uma estratégia narrativa”, afirma Daniel Cara, coordenador da
Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ex-candidato ao Senado pelo
PSOL. “Porque ele simboliza o estímulo ao senso crítico e a própria
pedagogia, que, na visão de Bolsonaro, significam doutrinação.”
Cara não está
sozinho na avaliação. “O que Paulo Freire preconiza é aceito no mundo
inteiro. Estive em Cingapura, primeiro lugar no (teste educacional)
Pisa, e eles citaram Paulo Freire como alguém que inspira o país a
buscar as aspirações educacionais que desejam”, disse à revista Nova Escola Cláudia Costin, coordenadora
do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da
Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial.
Outro desejo do futuro Governo é, também, a reinserção no
currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica, algo
abolido após o fim da ditadura militar. Durante a campanha, o general
Aléssio Ribeiro Souto, um dos designados por Bolsonaro para elaborar o
plano de educação, chegou a questionar a teoria da evolução e defender o
criacionismo no ensino de ciências. “Se a pessoa acredita em Deus e tem
o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de
coisa”, afirmou Souto.
Souto também prega uma revisão do período ditatorial nas
aulas de história, exigindo que se conte “a verdade” sobre o regime. “É
uma concepção autoritária da educação”, diz Luiz Carlos de Freitas,
pesquisador e professor aposentado da Unicamp. “Enxergam qualquer
pensamento diferente do deles como um risco, que deve ser combatido com
disciplina e repressão. E, ao combaterem uma possível ideologia com a
imposição de suas crenças, acabam caindo na contradição de promover
doutrinação às avessas. É um retrocesso.” Atualmente, ao contrário do
material didático adotado em colégios militares, que se referem ao golpe
militar como “revolução de 1964”, os livros do MEC definem o regime
como uma ditadura. O criacionismo consta na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). Já a educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro,
já vem sendo atacada há anos e é tratada apenas de maneira transversal
com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.
Os obstáculos para colocar as ideias em prática
Para colocar em prática as propostas direcionadas à área a
partir do próximo ano, Bolsonaro terá de entrar em rota de colisão com
as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional
Comum Curricular, além de apelar à influência no Congresso. As propostas
de revisão de currículo nas escolas se chocam com determinações
recentes do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que
auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da
Base Curricular. A reforma do ensino infantil e fundamental já está
finalizada, enquanto a do ensino médio deve ser concluída até o fim do
ano. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por
Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar
parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas.
Por muito tempo nossas instituições de ensino foram tomadas por ideologias nocivas e inversão de valores, pessoas que odeiam nossas cores e Hino. Hastear uma bandeira do Brasil não tem relação com política, mas com o orgulho de ser brasileiro e a esperança de tempos melhores.— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) 2 de novembro de 2018
Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no
início de mandato, entre elas o revisionismo da ditadura, que, segundo o
general Souto, passa pela eliminação de livros que “não tragam a
verdade sobre 1964 [ano do golpe militar]”, criacionismo, ensino de
moral e cívica e foco nas matérias de ciência, matemática e português, o
novo governo precisaria transferir para o Congresso o poder de
determinar as disciplinas no currículo. “Bolsonaro já deu mostras de
desprezo pelas regras do jogo democrático”, critica Daniel Cara. “O
caminho para emplacar suas medidas na Base Curricular seria um
rompimento institucional com o Conselho.”
Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela
Educação, lamenta que os planos para educação não tenham sido debatidos
na campanha e critica a falta de profundidade dos projetos de Bolsonaro,
cujo plano conclui dizendo que a educação precisa “evoluir para uma
estratégia de integração” entre os governos federal, estadual e
municipal, sem maiores detalhes. “Infelizmente, o debate sobre políticas
educacionais não ocorreu nessas eleições. Há muitas propostas em
discussão na esfera suprapartidária. Espero que o novo governo esteja
disposto a ouvi-las para buscar avanços duradouros na área.”
Pagar por universidade pública depende de mudança na Constituição
No plano já ventilado por apoiadores de Bolsonaro, há propostas como a
cobrança de mensalidade nas universidades que dependem de alterações na
Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino
público. Para revogar as cotas raciais, desejo antigo do presidente de
extrema direita, que pretende manter apenas as cotas sociais, ele teria
de mexer na lei de 2012 que reserva vagas para estudantes negros e
indígenas nas instituições federais. As emendas dependeriam de aprovação
em dois turnos na Câmara e no Senado. Pelos acenos favoráveis a seu
partido, que elegeu a segunda maior bancada de deputados, o governo não
teria grandes entraves para aglutinar maioria em torno dos projetos, mas
corre o risco de desperdiçar capital político previsto para reformas
que lhe exigirão mais esforços, como a tributária e a da Previdência.
Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
conteúdo
Breiller Pires
São Paulo
El País
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