Da lenda amazônica a Vanessa Esplendorosa: a história do açaí no Brasil



"Tá mó calor/ eu vou te perguntar/ se tu gosta de açaí/ te prepara pra tomar." Com seu "funk do açaí", Vanessa Cabral dos Santos, vendedora ambulante de açaí, virou Vanessa Esplendorosa e foi alçada das areias da praia de Ipanema ao topo dos 50 vídeos virais de 2018. Ela virou um fenômeno depois de cativar clientes fazendo rimas para vender açaí na praia, acompanhado de banana, morango, manga, kiwi, granola, leite condensado, chocolate em calda e paçoca.

A polpa de açaí é famosa por suas propriedades energizantes e rejuvenescedoras, mas sobretudo pelo seu sabor delicioso, uma mistura de frutas escuras com chocolate. O Brasil é responsável por 85% da produção mundial de açaí, mais de 1,25 milhão de toneladas por ano - o suficiente para encher 500 piscinas olímpicas. A fruta se tornou um novo símbolo nacional, desde suas origens amazônicas até as praias do Rio de Janeiro e o seu funk.
Com um cooler e uma camiseta escrito "AÇAÍ", Vanessa caminhava para cima e para baixo sobre as areias escaldantes da praia de Ipanema, animando os dias dos banhistas com sua positividade inigualável. As pessoas começaram a fazer vídeos que acabaram viralizando no YouTube. Rapidamente, os produtores musicais DJ Leco JPA e DJ Portuga ficaram tão cativados com seu carisma que ofereceram a ela a oportunidade de gravar a música.
Seu clipe do Funk do Açaí foi lançado em julho de 2018 e atingiu 5,2 milhões de visualizações. Em vez de cantar sobre temas repetidos do funk (violência, sexo e drogas), ela ganhou uma legião de fãs ao fazer rimas sobre o amado açaí brasileiro. 
"Toda vez que eu via um cliente, começava a cantar para ele, criando algo para animar o momento, fazendo a pessoa brilhar como uma estrela e se sentindo feliz", diz Vanessa. "Eu sempre trago energia boa para meus clientes, foi o que me ajudou a sair de um mundo muito sombrio de depressão e tristeza. E eu não podia mais ficar triste, eu estava sempre conectada ao açaí e ao clima da praia, no sol, no mar e nas boas energias que isso traz."  

Mitologia indígena

Curiosamente, a história de como o açaí ajudou Vanessa a recomeçar sua vida reverbera uma lenda amazônica sobre a origem da fruta. Seu nome vem de uma palavra do tupi que significa "fruta que chora". Pessoas com pouca imaginação dizem que é por causa do suco que a fruta produz, mas a lenda diz que é porque, muito antes de o açaí aparecer em mais de 3 milhões de hashtags no Instagram, a fruta nasceu em lágrimas.
Segundo a lenda, antes de os navios portugueses chegarem ao Brasil, um numeroso grupo Tupi vivia na região onde hoje fica a cidade de Belém, no Estado do Pará. Mas, conforme a população aumentava, havia cada vez menos comida à disposição.
Ao ver seu povo passar fome, Itaki, o chefe do grupo, ordenou que toda criança recém-nascida fosse sacrificada para manter a população sob controle até que uma fonte mais abundante de comida fosse encontrada. Ele não abriu qualquer exceção a essa ordem, mesmo quando sua própria filha Iaçã ficou grávida e deu à luz uma menina.
A jovem mãe chorou por dias após perder a filha e rezou para que o deus Tupã mostrasse outro caminho para salvar o grupo da fome e do sofrimento. Certa noite, Iaçã ouviu o choro de uma criança e, ao entrar no mato, viu sua filha sentada ao pé de uma palmeira. Ela estendeu os braços e correu em direção à criança, mas o bebê instantaneamente desapareceu no abraço. Inconsolável, Iaçã caiu sobre a palmeira chorando de coração partido.
No nascer do sol, seu corpo foi encontrado abraçado ao tronco da palmeira, mas seu rosto agora parecia sereno. Os olhos negros de Iaçã estavam voltados para o topo da árvore, onde foram vistos frutos pequenos e escuros. Os homens da comunidade colheram as frutas, liberando seu suco grosso e nutritivo entre os dedos. Itaki percebeu que foi uma benção de Tupã e batizou a fruta em homenagem a sua filha (só que com as letras ao contrário). A ordem de sacrificar bebês foi encerrada, e o grupo nunca mais passou fome.
Apesar de estarem separadas por centenas de anos e quilômetros, Iaçã da Amazônia e Vanessa do Rio personificam o motivo pelo qual o mundo se apaixonou pelo açaí: rejuvenescimento. Cheio de vitaminas, proteínas, fibras, aminoácidos, gorduras saudáveis e com 30 vezes mais antioxidantes que o vinho tinto, é atribuído ao açaí o poder de aumentar a energia, fortalecer o sistema imunológico, ajudar o crescimento dos músculos e combater os efeitos da idade. Com um currículo desses, é imensamente popular entre todos no Brasil, do rico ao pobre.
"Sem dúvidas, o açaí foi e é um alimento que podemos descrever como democrático no sentido de que sempre está na mesa e certamente na alimentação dos povos tradicionais, dos colonizadores, do rico, do pobre, do civil, do militar, religioso ou não, alfabetizado ou não", diz Leila Mourão Miranda, professora da Universidade do Pará, que escreveu uma tese sobre o açaí.
No Rio, casas de suco em diversas esquinas vendem o açaí com outras frutas e uma gama de opções de doces. Mas poucos fãs de açaí fora do Brasil sabem que a tigela de açaí é tão tradicional para o país quanto uma pizza de abacaxi e presunto é para a Itália.
No Pará, maior produtor da fruta, o açaí é matéria-prima da cozinha e ingerido como acompanhamento de peixe frito ou camarão, sendo que os locais o derramam como um molho ou mergulham o peixe no açaí.
Os paraenses também comem açaí como um lanche mais natural, com só um pouco de açúcar para adoçar e sem cobertura, exceto farinha de tapioca ou de mandioca. Para eles, acrescentar frutas, granola ou qualquer outro item significa desvirtuar o verdadeiro gosto do açaí.
Eu descobri isso em um boteco chamado Tacacá do Norte no bairro do Flamengo, no Rio. É um dos poucos lugares no Rio onde você pode comprar açaí no estilo paraense, considerado o melhor da cidade entre os entendidos.
Nos anos 1990, surfistas bronzeados e ratos de academia no Rio ouviram falar pela primeira vez dos benefícios do açaí para a saúde, e então adicionaram xarope de guaraná - feito com as sementes de outra planta amazônica com altos níveis de cafeína - para ajudar a preservar o sabor do suco do açaí e sua polpa após o congelamento. Isso o tornou um lanche energizante, e foi assim que começou a febre do açaí.
Mas minha amiga Beatriz Daibes, uma paraense que se mudou de Belém para o Rio no ano passado para estudar, afirma que não entrou na moda. "Eu prefiro o tradicional, sem xarope de guaraná, acho que a textura é melhor, mais cremosa", diz ela. "Eu acho que o estilo do Rio é mais um mousse, um sorvete de açaí do que o próprio açaí. E no Norte não usamos xarope, mas açúcar".
E quanto à combinação com peixe frito e camarão?, perguntei. "É uma delícia!", disse ela. "Há restaurantes que servem açaí como sobremesa e também para comer como acompanhamento de peixe e camarão. E é muito bom, uma mistura de doce e salgado". 
Tanto no Rio, com sua versão de sorvete cheia de guaraná, ou com o estilo "menos é mais" tradicional do Pará, os brasileiros têm muita opção quando se trata de açaí. Para o resto do mundo, só é possível comprar a polpa congelada ou em pó, já que o açaí estraga muito fácil. No Brasil, é possível degustá-la na beira da praia com música e boas energias, o que torna o gosto ainda melhor.
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