Há um mês a auxiliar de cozinha Paloma da Cunha, de 22 anos, não consegue parar de rebobinar em sua cabeça as lembranças do tsunami de lama produzido após o rompimento da barragem I da mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho. A enxurrada de rejeitos da mineradora Vale engoliu sua casa, levando embora o marido, o filho de 1 ano e 6 meses, a irmã de 13 anos e o futuro como ela tinha imaginado. Paloma foi a única da residência que sobreviveu.
Com muita dificuldade, chegou até um dos pilares de um
pontilhão de uma linha de trem rompida pela força da lama. Neste ponto,
conseguiu escutar a voz de Claudiney Coutinho, funcionário da Vale, que a
localizou e lançou uma corda para resgatá-la. Afundada na lama, Paloma
mal conseguia se mexer. O resgate, filmado por um amigo de Coutinho pelo
celular, foi uma das imagens mais impressionantes da retirada de
sobreviventes da tragédia de Brumadinho, que deixou pelo menos 179
mortos . Aos menos 131 seguem desaparecidas.
"Eu já não estava aguentando mais, a lama é muito pesada.
Sentia muitas dores, quebrei o osso esterno, o nariz, estava sangrando
muito, mas eu só pensava na minha família. Naquele momento, eu achei que
todo mundo poderia estar vivo como eu". As esperanças de Paloma, no
entanto, foram diminuindo ao longo dos dias que esteve internada em um
hospital em Belo Horizonte. Primeiro veio a notícia de que o corpo do
marido Robson Andrade, de 26 anos, tinha sido encontrado. Sem poder
deixar o centro médico, Paloma lamenta não ter podido dar o último
adeus.
No dia 7 de fevereiro, quando já tinha retornado a Brumadinho,
o corpo da irmã Pamela foi identificado. O velório aconteceu no dia
seguinte, com o caixão lacrado. "Depois de tudo que eles fizeram com a
gente, ainda temos que enterrar com o caixão fechado. A gente fica
pensando, será que é a pessoa? É horrível. O meu bebê Heitor ainda não
foi encontrado, eu fico ligando para saber notícias, mas até agora
nada", se emociona.
Sentada em um sofá de uma casa alugada pela Vale e ainda
com o rosto bastante machucado, Paloma reclama do descaso da mineradora
após a tragédia. "Só consegui esse lugar aqui porque eu procurei eles e
insisti que queria uma casa. Quando voltei do hospital e fui à Estação
do Conhecimento [espaço da mineradora usado para auxiliar parentes e
amigos de vítimas e desaparecidos], as pessoas falaram que nem sabia que
eu existia. Como pode?", diz. Para Paloma, dinheiro nenhum trará sua família de volta, mas está empenhada em lutar até conseguir todos os seus direitos e encontrar também o corpo do bebê.
Ela não consegue entender como sobreviveu, mas acredita
que, se essa foi a vontade de Deus, foi para que ela siga em frente.
Decidiu adotar no último mês a estratégia de viver um dia de cada vez.
"Já não faço planos como fazia, fiz tantos planos com a minha família e
não aconteceu nada do que eu sonhei. Para que pensar muito no futuro se
em um minuto a gente pode perder todo mundo que a gente amava?"
Às vezes, Paloma se questiona se diante de tamanha perda e
dor sua "ficha já caiu". "Parece que eu estou viajando, longe de casa, e
na hora que eu voltar vai estar todo mundo me esperando. Ainda mais o meu filhinho, eu amava demais, era meu sonho ter ele", lamenta.
A sede de justiça e o amor de mãe é o que também faz o
coração de Andreza Rodrigues continuar batendo um mês após a tragédia.
Moradora de Mário Campos, cidade vizinha a Brumadinho, ela busca
incansavelmente notícias sobre o filho Bruno Rocha Rodrigues,
engenheiro, que trabalhava na Vale. Ele tinha sido efetivado em 2018 na
mineradora após trabalhar dois anos como estagiário. "O que sentimos é
um descaso em relação às buscas dos mais de 100 desaparecidos. A
intensidade diminuiu ao longos dos dias, temos menos helicópteros
circulando, menos informações do que está sendo feito. Já estamos
completando um mês de luto sem corpo. A gente está morrendo um pouquinho
cada dia", diz Andreza. Segundo o Corpo de Bombeiros,
as buscas ainda não têm prazo para finalizar e podem durar meses. Eles
explicam que os trabalhos entraram em uma nova fase, mais complexa e
lenta, de escavações e uso de maquinário, e menos sobrevoos de
varredura.
A mãe de Bruno chegou a visitar o local de trabalho do
filho a convite da empresa há alguns meses e questionou uma funcionária
que dava uma palestra na companhia se a barragem desativada não corria
risco de rompimento. "Ela me falou que não, que era monitorada
diariamente. Ou seja, mascarado diariamente. Eles sabiam que estavam
levando nossas famílias para o matadouro. Quem assinou os relatórios
sabia do risco que todos sofriam", afirma.
Oito funcionários da Vale, entre gerentes e integrantes de equipes técnicas, estão presos sob acusação de “conluio” para ocultar informações sobre os riscos da barragem de Brumadinho.
Junto com o marido, Andreza tem participado de distintas
reuniões sobre a tragédia para fazer um clamor para que os desaparecidos
não sejam esquecidos. "O presidente disse que a Vale é uma joia, mas
quem são as joias são os nossos entes queridos que estão soterrados lá",
disse Andreza.
A mãe de Bruno –assim como outras 264 famílias– recebeu uma
doação de 100 mil reais da Vale por ter tido um parente vítima do
rompimento. Outras 56 pessoas foram contemplados com 50 mil reais por
residirem em imóveis na zona de Autosalvamento. "Teve a questão das
doações e agora começam as propostas de indenização, tudo é muito
triste, quanto vale a vida do meu filho e dos outros? Ele era tudo que eu tinha. Fui mãe aos 14 anos, vivi uma vida dedicada a ele", diz.
Na última quinta-feira, o casal se somou a um encontro
promovido pelo Ministério Público e a Defensoria Pública da União,
realizado no bairro Parque da Cachoeira, em que foi esclarecido aos
moradores algumas dúvidas sobre o acordo assinado pela Vale, no qual a
mineradora se comprometeu a pagar uma indenização de um salário mínimo
mensal por um ano a todos os moradores de Brumadinho adultos, meio por
adolescente e um quarto para crianças. O documento prevê também o mesmo
pagamento aos moradores de comunidades até um quilômetro do rio
Paraopeba.
A notícia do acordo suscitou dúvidas de várias pessoas da
comunidade que queriam saber se o valor seria descontado da indenização
futura que atingidos irão receber e se as doações oferecidas pela Vale -
de 100 mil reais e 50 mil reais - continuavam valendo. Um dos moradores
questionou se era justo que pessoas que perderam familiares, casas,
local de trabalho, recebessem a mesma indenização de moradores ricos de
Brumadinho que não tiveram suas vidas afetadas.
"Ninguém perdeu nenhum direito porque o outro ganhou. Se
vocês se desunirem vai ser pior e é isso que a Vale quer", replicou o
promotor de Justiça André Sparling. Na avaliação dele, reconhecer um
acordo para todo o município - que possui 39.520 habitantes, segundo o
IBGE- é uma vitória já que, além dos atingidos diretamente pelo
rompimento da barragem, várias pessoas, comércios e pousadas foram
afetadas indiretamente. Ainda não há, no entanto, previsão de quando
esses valores serão liberados para a população.
Em compasso de espera, o agricultor Leonice Fernandez
Ferreira, que assistia também à reunião não sabe como serão os seus
próximos dias. A horta em que trabalhava foi levada pela lama e, apesar
de já ter feito o cadastro pedindo uma doação emergencial de 15 mil
reais da Vale por ter perdido seu ambiente de trabalho, ainda não
recebeu nada. Desde a tragédia vive de alimentos básicos que estão sendo
doados na comunidade. "O que eu sei mexer nessa vida é na horta, não
sei para onde ir", lamentava. Segundo a Vale, a doação de 15 mil reais
para quem teve negócios impactados está em fase de cadastramento.
Vida dentro de um quarto de hotel
Vivendo há um mês com a filha e o marido em um quarto de
hotel com três camas em Brumadinho, a operadora de moagem Maria
Aparecida dos Santos também tem pressa por respostas e providências da
Vale. A casa e a fazenda em que trabalhavam foram engolidas pelo tsunami
da lama no dia 25 de janeiro. Ela e a filha de 9 anos estavam na
residência na hora do rompimento, mas conseguiram sair a tempo de não
serem atingidas. "Desde o primeiro dia, que cheguei só com a roupa do
corpo, estou pedindo um aluguel de casa, uma assistência pra gente. Aqui
é uma passada, não uma moradia, um mês já passou", explica.
Assim como Maria Aparecida, cerca de outras 100 pessoas
também estão atualmente desalojadas após a tragédia, morando em quartos
de hotéis e casas de parentes. Famílias que viram suas vidas mudaram de
uma hora para outra e passam o dia entre o quarto e as dependências das
pousadas, sem saber o que será do futuro.
"O que é mais difícil é a falta de liberdade. Estamos sem
emprego, sem casa, sem nada. Já fiz os cadastros e protocolos possíveis,
troquei minha filha de escola, porque ela está traumatizada e não quer
mais voltar para o Córrego do Feijão. A casa alugada a Vale já poderia
ter providenciado", afirma Maria Aparecida. A operadora de moagem diz
que tem sido tratada muito bem na pousada, mas quer um lugar para chamar
de seu. Confessa, no entanto, ter passado por situações
constrangedoras, como num dia em que, segundo ela, foi impedida de
almoçar no restaurante localizado no hotel sob alegação que a comida
tinha sido suspensa. "Foi uma situação absurda da Vale, que tirou a
minha casa, a minha liberdade, e agora estava restringindo a alimentação
de uma criança de 9 anos", conta.
Enquanto os dias passam, a dor de Maria Aparecida, que além
da casa perdeu um número grande de amigos e vizinhos, parece crescer.
"Essa dor não sei se vai cicatrizar não. O porquê é o que ninguém
responde. Por que ninguém tomou providência sobre isso e deixou o
dinheiro falar mais alto? Assinaram que a barragem estava segura por causa do dinheiro", diz de maneira enfática. "Dinheiro demais faz desordem. Matou todo mundo", conclui.
conteúdo
Heloísa Mendonça
Brumadinho
El País
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