Caros Brasileiros, Será que "a grande ilusão do Carnaval" é
uma ilusão? Será que não são o rei e a jardineira fantasiados que vivem
uma ilusão, mas sim, pelo contrário, o público que os aplaude? Na música
A felicidade, de Tom Jobim, tudo se acaba na Quarta-feira de Cinzas. Mas,
na verdade, não acaba mais não. Faz 60 anos que Tom Jobim compôs essa
música maravilhosa. Em 1958, era "normal" que o rei ou a jardineira
voltassem a trabalhar para um salário mínimo depois da folia, ficando
quietinhos até o próximo Carnaval. Graças à luta de muitas
"jardineiras e piratas", essa "normalidade" esta acabando. Pois os
filhos e netos dos "piratas e jardineiras" hoje finalmente têm mais
direitos, opções profissionais e mais peso político. O Brasil da Casa grande e senzala que Gilberto Freyre descreveu mudou. Inclino-me perante guerreiras como Odete Conceição ou Nair Jane,
"relíquias" do sindicato das domésticas, que lutaram para coisas tão
básicas como o direito de ter uma certidão de nascimento. Pois, sem
documento, muitas empregadas domésticas não "existiam" e,
consequentemente, também não tinham direito à aposentaria, mesmo depois
de décadas de trabalho. Ainda falta muito para se livrar dessa
herança cultural da escravidão. Mas não tem mais volta. Nem a eleição de
Bolsonaro vai mudar isso. A vida de madame não tem futuro. Só que, no
Brasil, muitas mulheres da classe média e da chamada alta sociedade
ainda não se deram conta disso. Cada vez que converso com
brasileiros que se mudam para a Alemanha, me lembro desses contratempos e
das eternas queixas sobre empregadas que não "trabalham direito". E são
muitos os brasileiros vieram para a Europa e a Alemanha, especialmente
depois da última eleição. Não é só ativista político que se sente
perseguido porque luta por diretos de minorias ou direitos sociais. É
muita gente que foge do clima pesado, do pessimismo, da violência e da
falta de perspectivas. Inclusive os eleitores de Bolsonaro. Independentemente
dos motivos da emigração, muitos brasileiros que chegam à Alemanha se
deparam aqui com uma vida de "pirata e jardineira": sobrevivem sem
arrumadeira, passadeira, cozinheira, faxineira, babá, porteiro ou
motorista. Encontram "piratas e jardineiras" do morro que trabalhem por
aqui e se viram muito melhor do que eles. Confesso que já
presenciei cenas incríveis. Macarrão grudado e tão duro que precisava de
uma faca para cortar; blusa branca que virou cor-de-rosa e azul, pois
rodou junto com calça jeans na máquina de lavar roupa; e roupa de cama
que nunca foi trocada. Pergunto-me: quanto tempo ainda vai durar a
ilusão brasileira de Carnaval? Quanto tempo ainda vai demorar até que
grande parte da classe média brasileira se emancipe da herança da
escravatura? Admito que muita gente poderia argumentar que essa
crítica minha é hipócrita. Eu mesma já me questionei. Pois, quando vivia
no Brasil, também tinha a mordomia de ter uma babá para as minhas
filhas. No início, me senti constrangida, mas depois fiz as pazes e tentei devolver o apoio que dela recebi. Hoje,
estou cada vez mais convencida de que a ilusão do Carnaval não é uma
ilusão. É a realidade que define o dia a dia no Brasil. Só falta que o
reconhecimento no Sambódromo seja estendido para os foliões do morro nos
outros 360 dias do ano também. Já em 1956 se cantava: "Pra que
discutir com madame?" Quando eu era chamada de 'madame' no Brasil, me
sentia ofendida. Sentia um gostinho da vingança. Percebi que levava uma
vida de "madame”, mesmo sem querer. Acabou. E não sinto falta. É chata, a
vida de madame.
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