Um total de 77 palavras para resumir o escândalo que colocou o país mais poderoso do mundo de ponta-cabeça: “Recebi informações de vários funcionários do Governo norte-americano de que o presidente dos Estados Unidos está usando o poder de seu cargo para pedir a interferência de um país estrangeiro nas eleições de 2020.
Com brevidade, precisão e crueza, no estilo de um telegrama, começa a denúncia anônima do caso envolvendo Donald Trump
e a Ucrânia, um bom reflexo da velocidade com que o escândalo pegou
fogo. Um informante dos serviços de inteligência apresentou o escrito em
12 de agosto. E na noite de 23 de setembro, em um voo de Nova York a
Washington, a veterana democrata Nancy Pelosi, presidenta da Câmara dos
Representantes, começou a escrever à mão o rascunho do discurso com o
qual anunciou o início da investigação para uma possível destituição de Donald Trump. O famoso impeachment.
Com
a pressa, Pelosi deixou o papel no avião. Não importa, no dia seguinte,
24, parece tê-lo aprendido muito bem. A Câmara baixa, de maioria
democrata, lançou a maquinaria do impeachment. Considerou as pressões do
mandatário republicano sobre o presidente ucraniano para que a justiça
desse país investigasse o ex-vice-presidente Joe Biden, o pré-candidato
para 2020 mais bem colocado nas pesquisas, e seu filho Hunter, por conta
de seus negócios em Kiev. Como na trama russa, este caso envolve um
Governo estrangeiro e a procura de roupa suja que, se existir,
prejudicará irremediavelmente as chances de seu oponente democrata ser
escolhido. O desenlace, no entanto, se apresenta radicalmente diferente.
Para
entender como em seis semanas se desencadeou uma tempestade que não
aconteceu depois de quase dois anos de investigações sobre a
interferência do Kremlin, é preciso voltar a uma ligação telefônica de
25 de julho e a uma reunião em Madri em 2 de agosto; ao papel de um
delator anônimo que se indignou com o que estava descobrindo e a um
funcionário com nome e sobrenome, Michael Atkinson, que deu um soco na
mesa e foi ao Congresso. Por último, a uma mulher, Nancy Pelosi, que deu
um passo à frente. A história da Ucrânia e o impeachment são um exame
da saúde do sistema norte-americano, um passeio por suas cloacas e suas
bondades. Explodiu em 2019, mas as origens remontam inclusive à revolução de Maidan, em 2014.
Os negócios de Biden na Ucrânia
Biden
pai, então vice-presidente da Administração Obama, viajou várias vezes a
Kiev para ajudar a consolidar o novo Governo de Poroshenko e, pouco
depois, seu filho Hunter foi contratado pela Burisma Holding, uma das
maiores empresas de gás do país, com um salário mensal de 50.000
dólares. A Casa Branca não considerou que houvesse conflito de
interesses, apesar da polêmica contratação (principalmente porque o
proprietário da empresa em questão, Mikola Zlochevski, é um oligarca
próximo do ex-presidente Yanukovich, investigado por abuso de poder,
lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito, mas nunca condenado).
Esse
é o fio que Trump e Giuliani puxaram durante meses para tentar
encontrar um possível caso de corrupção envolvendo o filho do veterano
democrata. Acusaram o vice-presidente de ter conseguido a destituição do
procurador-geral da época, Viktor Shokin, para deter uma investigação
contra Hunter, mas não foi revelado que tenha havido alguma investigação
em andamento sobre os Biden na Ucrânia. O ex-vice-presidente pediu a
saída de Shokin, ameaçando até — como ele mesmo reconheceu em público —
cortar as ajudas prometidas, mas esse pedido foi compartilhado por
especialistas de organizações anticorrupção que denunciavam justamente a
inação do procurador, incapaz de obter qualquer condenação notável.
O
interesse em conseguir uma investigação sobre os Biden entrou em
terreno pantanoso muito antes deste verão [no hemisfério Norte], de
acordo com a denúncia do delator anônimo, que foi identificado pela
imprensa norte-americana como um funcionário da CIA que foi designado à
Casa Branca durante um tempo e afirma ter tido a colaboração de meia
dúzia de fontes.
A pistola fumegante do caso
A
conversa telefônica entre Donald Trump e seu colega ucraniano,
Volodimir Zelenski, em 25 de julho representa, no entanto, a coisa mais
parecida com uma pistola fumegante do caso, a prova mais incriminadora.
Nela, o norte-americano pede insistentemente a Zelenski que investigue
Biden e seu filho e lhe repete várias vezes que seu advogado pessoal,
Giuliani, e o procurador-geral dos EUA entrarão em contato com ele para
ajudá-lo. O delator anônimo não ouviu diretamente a conversa, mas vários
funcionários que o fizeram ficaram alarmados com o conteúdo e com o que
aconteceu depois, já que, de acordo com o denunciante, advogados da
Casa Branca tentaram esconder a transcrição.
No dia 26, o
dia seguinte à conversa do presidente, o representante especial do
Governo dos EUA para a Ucrânia, Kurt Volker [que renunciou na
sexta-feira], se encontrou com Zelenski e outros políticos ucranianos
para discutir como “navegar” os pedidos de Trump. Em 2 de agosto
Giuliani se reuniu em Madri com um dos assessores do presidente
ucraniano, Andriy Yermak, para acompanhar os “casos” que discutiram.
Vários
funcionários explicaram ao denunciante que, na realidade, essa foi
apenas uma das muitas reuniões que o advogado de Trump teve com
diferentes assessores de Zelenski. A denúncia cita outra reunião de
Giuliani com o novo procurador-geral ucraniano, Yuriy Lutsenko, no fim
de janeiro em Nova York e outra, em meados de fevereiro, em Varsóvia. Em
9 de maio, o The New York Times publicou que o advogado
planejava viajar para Kiev para pressionar o Governo ucraniano a iniciar
duas investigações que beneficiariam Trump, uma sobre a interferência
eleitoral de 2016 e outra sobre o filho de Biden. Levantou um alvoroço
de críticas que o fez cancelar a visita.
Dias depois das
notícias sobre essa viagem cancelada, vários funcionários da
Administração começaram a compartilhar com o denunciante sua preocupação
com as manobras do assessor do presidente. Giuliani pareceu se
impacientar em 21 de junho, quando publicou em sua conta no Twitter: “O
novo presidente da Ucrânia ainda guarda silêncio sobre a interferência
ucraniana em 2016 e a suposta mordida de Biden em Poroshenko. Está na
hora de seus líderes investigarem os dois [assuntos] se quiserem purgar
os abusos do pessoal de Hillary Clinton contra a Ucrânia”.
O difícil percurso da denúncia
Em
meados de julho, o denunciante ficou sabendo de uma mudança na política
de ajudas dos EUA à Ucrânia, pela qual a entrega de 391 milhões de
dólares ficou bloqueada. Em 25 de julho aconteceu a famosa chamada.
“Farei com que Giuliani te ligue e também que o procurador-geral te
ligue e chegaremos ao fundo do assunto. Tenho certeza de que você vai
resolver isso”, disse Trump nessa conversa, como seria divulgado
exatamente dois meses depois, em 25 de setembro, quando o resumo por
escrito da chamada se tornou público.
Foi então que esse
informante anônimo deu um passo à frente, embora o percurso entre dar o
alarme e fazer com que algo se mova também tenha tido algo de odisseia. A
primeira queixa foi apresentada no início de agosto a Courtney Simmons
Elwood, advogada-geral da CIA, que a levou ao conhecimento da Casa
Branca, do Conselho de Segurança Nacional e do Departamento de Justiça,
segundo o The New York Times. Quando o informante descobriu que
Elwood falou com a Casa Branca, temeu que não acreditassem nele e
enterrassem o assunto. Então, em 12 de agosto, apresentou seu relatório a
Michael Atkinson, inspetor-geral da comunidade de inteligência. Este
canal lhe ofereceu, além disso, muito mais proteções legais.
No
fim de agosto, o escritório do diretor de Inteligência Nacional, com o
interino Joseph Maguire à frente, também encaminhou o caso ao
Departamento de Justiça, mas este não abriu uma investigação e Maguire
não informou o Congresso. Atkinson o fez, advertiu a Câmara e o Senado
de que existia uma denúncia sobre a qual ele não podia falar. A pressão
dos democratas acabou fazendo explodir a panela de pressão. No fim de
semana anterior à Assembleia das Nações Unidas em Nova York o motivo da
denúncia foi divulgado e as placas tectônicas do Partido Democrata
começaram a se mover.
A guinada de Nancy Pelosi
Nancy Pelosi,
a pessoa mais poderosa do Partido Democrata, terceira autoridade da
nação e especialista na selva de Washington, vinha sufocando durante
todo o ano os legisladores mais combativos, que reclamavam um
impeachment contra Trump por causa da trama russa. A atuação pouco
conclusiva do promotor especial do caso, Robert S. Mueller, que não
encontrou provas de negociata entre Trump e o Kremlin, acabou
convencendo-a. O processo não apenas fracassaria no Senado, de maioria
republicana, como ajudaria a vitimizar Trump diante de suas bases e
seria politicamente contraproducente.
O caso da Ucrânia,
no entanto, a fez mudar de posição. Diante do caráter tortuoso da trama
russa, este caso é muito concreto, muito simples de entender e dispõe de
uma pistola fumegante que o assunto da ingerência russa nunca teve. A
pressão de muitos legisladores se intensificou e, depois de uma série de
reuniões, na segunda-feira à tarde Pelosi tomou uma decisão.
Na
terça-feira, em seu discurso, a presidenta da Câmara dos representantes
citou um dos pais da pátria: “Nos tempos mais sombrios da Revolução
Americana, Thomas Paine escreveu: ‘Os tempos nos encontraram para lutar
pela democracia’”. Os riscos políticos continuam presentes — a
popularidade de Bill Clinton cresceu depois de seu fracassado
impeachment —, mas Pelosi, segundo disse na terça-feira, acredita que
Trump não lhes deixou outra opção. “Devemos colocar o país antes do
partido.” Trump já começou a denunciar uma “caça às bruxas” e as
primeiras intimações a depor perante o Congresso já começaram a ser
expedidas. O tempo encontrou todos.
conteúdo
Amanda Mars Checa
Washington
El País
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