Rodrigo Janot, o ex-procurador-geral da República que conduziu a Operação Lava Jato nos tribunais superiores até setembro de 2017, jogou uma bomba na crise política do país com o lançamento de seu livro de memórias sobre a investigação e os bastidores do poder em Brasília. Sob o título Nada menos que tudo, Janot, que reinou na PGR desde 2013, fala sobre os bastidores da Lava Jato, as agruras do cargo e as investidas de investigados para "seduzi-lo".
Mas foi nas entrevistas para a divulgação do seu livro que ele admitiu um pensamento homicida que atingiria um dos seus maiores desafetos, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Em seis linhas do livro, ele conta que se sentia “irado” por tentativas de investigados de “enxovalhar a imagem” de seu irmão, Rogério, já falecido, e por “insinuações maldosas” contra sua filha, a advogada Leticia Ladeira Monteiro de Barros, Janot afirmou que pensou em assassinar a tiros “uma autoridade de língua ferina”. O nome dessa autoridade não é revelado no livro, mas em entrevistas, divulgadas nesta quinta-feira, ele admitiu se tratar de Gilmar Mendes, que já foi seu amigo no começo de carreira, mas se tornou seu mais ferrenho adversário na corte.
“Num dos momentos de dor aguda, de ira cega,
botei uma pistola carregada na cintura e por muito pouco não
descarreguei na cabeça de uma autoridade de língua ferina que, em meio
àquela algaravia orquestrada pelos investigados, resolvera fazer graça
com minha filha. Só não houve o gesto extremo porque, no instante
decisivo, a mão invisível do bom senso tocou meu ombro e disse: não”.
Nas entrevistas, Janot afirmou que chegou a engatilhar a arma para
atirar em Gilmar em uma sala do Supremo, mas desistiu. “Fui armado para o
Supremo. Ia dar um tiro na cara dele e depois me suicidaria”, declarou à revista Veja.
Janot achava que tinha partido de Gilmar a divulgação de notícias na imprensa sobre o fato de sua filha, Letícia, ter trabalhado como advogada da OAS, uma das empreiteiras investigadas pela Operação Lava Jato. À Veja,
ele admite a cena de forma desconcertante: “Quando procurei o gatilho,
meu dedo indicador ficou paralisado", explicou. "Eu sou destro. Mudei de
mão. Tentei posicionar a pistola na mão esquerda, mas meu dedo
paralisou de novo. Nesse momento, eu estava a menos de dois metros dele.
Não erro um tiro nessa distância. Pensei: ‘Isso é um sinal’. Acho que
ele nem percebeu que esteve perto da morte. Depois disso, chamei meu
secretário-executivo, disse que não estava passando bem e fui embora.
Não sei o que aconteceria se tivesse matado esse porta-voz da
iniquidade. Apenas sei que, na sequência, me mataria”.
Sua
transparência em admitir a fúria, e a proximidade de ter cometido um
crime —que devastaria a República— contra um desafeto, gerou uma
hecatombe. Tudo no mesmo dia em que o Supremo julgava um dos casos que podem levar à anulação de sentenças da Lava Jato.
Mais do que isso, deu elementos para atacar a já afetada imagem do
Ministério Público e da sua mais ambiciosa operação depois das
revelações dos diálogos entre procuradores da Curitiba, obtidas pelo The Intercept Brasil.
A reação de Gilmar ao sincericídio
de Janot foi direto ao ponto. Além de recomendar ao ex-procurador “que
procure ajuda psiquiátrica”, o ministro, que é um dos maiores críticos
da operação de Curitiba, afirmou, por meio de nota, que “se a
divergência com um ministro do Supremo o expôs a tais tentações
tresloucadas, imagino como conduziu ações penais de pessoas que ministro
do Supremo não eram”. Gilmar reforçou, ainda, a crítica a uma
fragilidade do processo que domina a cena política e jurídica do Brasil
nos últimos anos. "O combate à corrupção no Brasil — justo, necessário e urgente — tornou-se refém de fanáticos que nunca esconderam que também tinham um projeto de poder".
Outros
aproveitaram a deixa para explorar a “instabilidade emocional” do
procurador. O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay,
responsável pela defesa de 17 pessoas no processo da Lava Jato, disse
que o grau de descontrole do Janot “reforça e endossa todas as críticas
que o ministro (Gilmar) fez ao longo dos últimos tempos”. Para ele, a
manifestação de Janot “nesta hora de instabilidade e de divisão do país é
claramente um incentivo à barbárie.
Este procurador processou e pediu prisões de muitas pessoas, conduzindo
os inquéritos, com esta enorme instabilidade emocional”, conclui.
No
seu livro, Janot não faz grandes revelações sobre as investigações. Nem
aborda os casos que deixou de investigar, como a tentativa de delação
premiada da Engevix, negociada e rejeitada em 2016 que em 2019 serviu de
principal prova para prender o ex-presidente Michel Temer.
Mas o ex-procurador revela que, durante as investigações, recebeu
convites de investigados para assumir posições de prestígio no futuro.
Caso de um convite feito pelo ex-senador Aécio Neves
(PSDB), candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2014, para
ser seu candidato a vice-presidente nas eleições de 2018. Diz ainda que
foi sondado, em diferentes momentos, pelo ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo
(PT) e pelo advogado Gustavo Rocha, ex-assessor jurídico de Temer, para
virar ministro do Supremo Tribunal Federal, quando avançavam
investigações, respectivamente, contra o Governo Dilma Rousseff e contra o Governo Temer.
O
ex-procurador concedeu uma entrevista nesta semana ao EL PAÍS, mas,
após a repercussão de suas declarações sobre Gilmar Mendes, afirmou que
não comentaria mais o episódio. Leia abaixo os principais trechos da
conversa com Janot.
Planos contra Nicolás Maduro, presidente da Venezuela
No livro, Janot revela que foi planejada a apresentação de uma ação penal contra o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, na Justiça brasileira, para que ele fosse julgado por eventuais atos de corrupção delatados por executivos da Odebrecht.
No entanto, ele diz que não sabe no que resultaram esses planos depois
de sua saída da procuradoria. “A ideia foi a seguinte: quando tem atos
de corrupção que extrapolam limite territorial, a regra é a
extraterritorialidade da soberania. Tinha um gancho para a soberania
brasileira, que era a prática do ato de corrupção por um brasileiro
(diretor da Odebrecht que teria repassado dinheiro para Nicolás Maduro).
Se é praticado um ato de corrupção fora do país por um brasileiro,
aplica-se a sua jurisdição ao seu cidadão. Os Estados Unidos
fazem isso à rodo. Quando aplica isso ao seu cidadão brasileiro, chama
para esse processo as pessoas que participaram do crime. Era nesse
sentido que entraria o Maduro no processo”, afirma.
Conversas publicadas pelo ' The Intercept'
O
ex-procurador afirma que não viu “prova fraudada” nas conversas entre o
ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, reveladas pelo The Intercept Brasil, e publicadas em parceria com outros veículos, incluindo o EL PAÍS.
“Do
que vi até agora, de algumas conversas você pode extrair exceção de
suspeição, parcialidade. Ocorre que o julgamento do Moro foi substituído
pelo julgamento do Tribunal Regional Federal. Esse julgamento já foi
até o Superior Tribunal de Justiça, que muda o julgamento do Tribunal
Regional Federal e volta a condenação ao patamar de Moro. Teria que
provar um ato específico do Tribunal Regional Federal e um ato
específico do STJ que pudesse comprometer a imparcialidade do
julgamento. Até agora, não vi nenhuma contaminação de prova, prova
fabricada, fraudada, isso eu não vi. Isso aí ensejaria sim nulidade e
contaminaria processo como um todo, mas até agora não vi. Tem um reflexo
político. Eu não me sentiria confortável de ter conversas como aquelas
com Teori [Zavascki, ministro do Supremo morto em janeiro de 2017]. Nunca tive. Eu trocava mensagens técnicas sobre ponto específico, mas nunca interferi no trabalho dele e ele no meu”, afirmou.
Contatos informais sobre investigações
Embora
tenha revelado no livro que chegava a informar previamente o ministro
Zavascki, do Supremo, sobre pedidos que faria à Corte e que chegou a
mostrar a ele, informalmente, as gravações em áudio das conversas do ex-presidente Michel Temer com o empresário Joesley Batista
antes que fosse assinado o acordo de delação premiada do Ministério
Público com Joesley, Janot avalia que seus contatos informais eram
diferentes da relação entre Deltan e Moro.
“O compromisso que eu tinha com o ministro Teori era de que ele seria informado de tudo.
Nunca pedi a ele absolutamente nada do que fosse ser pedido. Ele nunca
assumiu compromisso que faria assim ou assado. São fatos gravíssimos que
envolviam personagens enormes da República. Entendo que era meu dever
informar ele e ele foi informado, sim. É completamente diferente. Eu não
me imiscuía no trabalho dele, nem ele no meu. Eu tinha o dever de
informá-lo do que se passava”, afirma.
Reflexo de investigações contra Cunha no processo de impeachment
No livro, Janot diz que o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff foi lançado depois que o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha,
se viu encurralado por suas investigações. “A leitura que eu faço hoje é
que foi um dos fatores determinantes. Não foi tudo. Foi um dos fatores
que determinaram essa história e isso me foi contado tempos depois pelo
José Eduardo Cardozo [ex-ministro da Justiça de Dilma e seu advogado no processo de impeachment]:
“O cara queria simplesmente que ela mandasse você parar de
investigá-lo”. Ele teria dito então que ia tocar o processo de
impeachment”, diz em entrevista.
Falta de consequências de delação da Odebrecht no Brasil
Apesar da falta de resultados concretos e de dois terços dos casos terem sido arquivados pelo Supremo, segundo o jornal O Estado de S. Paulo,
Janot considera que a delação da empreiteira Odebrecht foi um caso de
sucesso. “Não sei se quase tudo foi arquivado (das delações da
Odebrecht). Esse sistema Drousys da Odebrecht
[software criado pela empresa para centralizar pagamentos a políticos]
trabalhava acoplado a outro, que era de e-mails. Tem registros
contemporâneos que dão veracidade à informação do circuito do dinheiro.
Acho que isso é bem robusto. Além disso, ainda que fosse para pagamento
em espécie, o sistema dizia a hora e quando se deu o pagamento. Exigir
que o cara dê recibo de pagamento de suborno é demais. Cada cabeça, uma
sentença. Eram consistentes as provas. Tinham indícios fortíssimos. Não
sei o que levou pessoas a arquivarem”, afirma em entrevista.
Palestras por fama da Lava Jato
No
livro, Janot critica o fato de a Operação Lava Jato ter sofrido um
“recuo nas ações concretas” depois da sua saída da Procuradoria-Geral da
República, em setembro de 2017, e estar se “transformando numa commodity
ou num passaporte para um dia de fama em Harvard”. Mas em entrevista
ele alega que essa não foi uma indireta para o procurador Deltan
Dallagnol, cujos planos em faturar com palestras foram revelados nas mensagens publicadas pelo Intercept.
“Eu
mesmo fiz muita palestra. Fui pra Suíça, Itália, Estados Unidos, falava
muito, mas nunca cobrei por palestra. Comecei a receber por palestra
depois que saí da procuradoria. O fato de cobrar por palestra também não
é ilegal e me limito aqui. Não vou fazer juízo ético ou moral do
comportamento das outras pessoas, porque não me compete fazer isso.
Posso afirmar que nunca cobrei”.
A prática de enviar cartas avisando políticos de abertura de investigação
"Fazia
por respeito institucional. Se eu vou seguir investigação ou se vou
arquivar, é uma coisa de cortesia profissional que se faça esse tipo de
comunicação. Me recordo de um fato que gravou muito a minha vida, em que
entendi a relevância de fazer essa comunicação. Claudio Fonteles era
procurador-geral e eu era secretário-geral dele. Eu despachava com
Claudio todo dia. Ele abriu investigação contra o senador Antonio Carlos
Magalhães [político baiano morto em 2007, avô do atual prefeito de Salvador].
Claudio tinha hábito de comunicar por escrito a abertura ou
encerramento de investigação. ACM pediu audiência ao Claudio e falou pra
ele: 'Não gostei de ser investigado, mas vim aqui agradecer a gentileza
profissional do senhor de ter me avisado'. Temer não recebeu cartinha.
Não dava, porque, como tinha ação controlada em curso, não dava para
informar. Quando tem alguma medida cautelar, você não informa."
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Daniel Haidar
Belo Horizonte
El País
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