A destruição da Amazônia segue a pleno vapor, apesar dos holofotes nacionais e internacionais em torno do tema, incluindo os do Vaticano, que promove até o fim do mês um encontro sobre o bioma. As áreas com alerta de destruição já somam 7.853,91 quilômetros quadrados, 92% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo dados do Deter, o sistema de alertas diário do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Em setembro, 1.447 quilômetros quadrados foram destruídos, 96% a mais em relação ao mesmo mês de 2018, ainda segundo o Deter.
Em junho, o aumento foi de 90%; em julho, 278%; em agosto, 222%. Ainda que o ritmo do aumento dos alertas tenha diminuído em setembro, 2019 já registrou mais desmatamento que os três anos anteriores, mesmo faltando mais de dois meses e meio para o fim do ano.
Os maiores índices de desmatamento estão no Pará, que abriga imensas áreas de reservas naturais e indígenas cobiçadas por grileiros, garimpeiros e madeireiros. Uma dessas áreas na mira é o território dos Arara, conhecidos por serem guerreiros. Suas terras estão na bacia do rio Xingu e abrangem mais de 274.000 hectares da Amazônia e quatro municípios. Demarcadas em 1991, até hoje invasores colocam em xeque a sobrevivência da selva e dos próprios indígenas que nela habitam. Em fevereiro de 2018, quatro famílias dessa etnia deixaram a aldeia Laranjal, uma das cinco instaladas no interior da floresta, para se estabelecerem na fronteira do território com a rodovia Transamazônica. O cacique Turu, que levou consigo sua esposa, duas enteadas e seus pais, tinha um único objetivo: tentar coibir, até agora sem armas, apenas com sua presença, a ação de invasores que roubam madeiras valiosas. Quase todas as noites saem com caminhões carregados com jatobá, ipê, massaranduba ou angelim. "Já fizemos denúncias, mas até agora não tomaram providências", acusa o homem, de 37 anos.
A terra indígena dos Arara faz
fronteira com 35 quilômetros da Transamazônica, entre os municípios de
Uruará e Medicilândia – a cidade tem esse nome em homenagem ao ditador Emílio Garrastazu Médici,
que governou o país de 1969 a 74. Da rodovia é possível ver dezenas de
ramais na mata por onde entram e saem os caminhões e máquinas que, pouco
a pouco, vão carcomendo o interior da floresta. "É triste", repete Turu
a cada minuto, enquanto pisa nas marcas de pneu e pacotes de cigarro, o
rastro dos invasores. Por fora, a mata parece intacta. Dentro há
pedaços de tronco e árvores caídas por todas as partes. Muita destruição
já foi feita. "É indignante ver que estão roubando algo que é nosso e
não poder fazer nada. Nós sobrevivemos da mata, da caça de macacos,
jabutis... A nossa briga é para que os brancos não desmatem tudo",
explica o cacique, que já trabalhou em fazendas e, agora, pretende
plantar cacau na floresta para ter uma fonte de renda. Para isso,
precisa de segurança.
Viajar pela rodovia Transamazônica
significa viajar no tempo. Enormes trechos permanecem com terra batida e
esburacados desde que a ditadura militar decidiu abrir essa imensa
rodovia transversal para o unir o Brasil de leste a oeste e colonizar a
Amazônia. Pequenas motos ocupadas por até cinco pessoas — adultos e
crianças — sem capacetes trafegam pela noite amazonense de faróis
desligados em um acostamento que sequer existe. Enormes caminhões
levantam a poeira da estrada. O perigo é constante. A impressão que se
tem é que tanto a autopista como a população estão abandonadas há 50
anos. Uma constatação que não deixa de ser verdadeira: nessa região do
Pará, o Estado peca por sua ausência e os conflitos por terra, ouro e madeira são sangrentos. Povos indígenas como os Arara estão entre os grupos mais vulneráveis. Além da própria floresta amazônica, que vai sendo destruída por serras elétricas e incêndios.


A tensão aumentou desde a eleição de Jair Bolsonaro.
O atual presidente brasileiro vem dizendo desde a época da campanha
eleitoral ser contra a demarcação de terras indígenas e promete liberar
atividades econômicas, sobretudo mineração, nos territórios protegidos
pelo Estado brasileiro. De acordo com a Rede Xingu +,
formada por aldeias e comunidades da região do Xingu, somente no mês de
julho 5.895 hectares de terras indígenas foram desmatadas, um aumento
de 213% com relação a junho deste ano e 436% a mais que em julho de
2018. "Assim que o presidente ganhou, entraram nas terras e fizeram uma
bagunça", recorda Turu. Os madeireiros já ameaçaram matar um de seus
primos. Armados, muitas vezes disparam para o alto para assustar. A
audácia desses invasores vem aumentando: da Transamazônica é possível
ver estacas de madeira recém colocadas para dividir o território e
ocupá-lo de vez.
Saindo da aldeia de Turu e seguindo 270
quilômetros pela Transamazônica está o município de Anapu. O centro
urbano em si é pequeno, pobre e pacato. Em uma tarde de domingo de
agosto há poucas almas vivas transitando pelas ruas, que abrigam casas
humildes e pessoas que trabalham nos comércios ou fazendas da região. Em
uma dessas vias está, quase escondido, um enorme depósito da prefeitura
com imensas toras de madeiras, todas elas apreendidas pelo IBAMA duas
semanas antes em uma das comunidades agricultores assentados pelo INCRA
em Anapu. São muitas, centenas. Empilhadas uma sobre a outra, é preciso
um breve exercício de escalada para caminhar sobre elas. Naquele mesmo
domingo, a Polícia Civil havia encontrado três homens mortos perto de um
trator. Pela característica do veículo, tudo indicava que trabalhavam
com extração ilegal de madeira, mas as causas da morte ou a identidade
dos rapazes não foram esclarecidas. As fotos dos cadáveres
ensanguentados perto do veículo rodavam os celulares da população. Era
apenas mais um dia normal em Anapu. O Pará se mantém como o quarto
estado mais violento do país, com 54,5 mortes por 100.000 habitantes,
contra 9,5 de São Paulo, segundo dados de 2018 divulgados recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O
município, vizinho a Altamira, abriga grandes propriedades de terra e é
palco dos mais sangrentos conflitos dessa região do Xingu. Foi lá que a
irmã Dorothy Stang, missionária norte-americana da Igreja Católica,
desenvolveu os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS),
comunidades que abrigam centenas de famílias de agricultores que buscam
conciliar o cultivo com a preservação da floresta. No início dos anos
2000, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
chancelou a criação dos assentamentos, contrariando os interesses de
grandes fazendeiros. A líder religiosa acabou assassinada em 12 de
fevereiro de 2005.
As suspeitas recaem para um consórcio
maior de latifundiários. O então prefeito de Anapu, Luiz dos Reis
Carvalho, e o fazendeiro Laudelino Délio Fernandes — assassinado no ano
passado — chegaram a ser apontados como mandantes,
mas a participação de ambos nunca foi provada. No final, dois
fazendeiros próximos a ele — um deles se escondeu na casa de Délio
depois da execução — foram condenados pela execução a tiros de Stang,
que tinha 73 anos na época e militava na Comissão Pastoral da Terra
(CPT). "Continuamos seu trabalho. Mas, desde sua morte, outras 17
pessoas foram assassinadas na região defendendo suas terras, que são
públicas, da União", conta o padre José Amaro Lopes de Sousa, sucessor
de Dorothy na CPT de Anapu. Os grandes proprietários da região nunca aceitaram a criação dos PDS,
que abarcam áreas que eles dizem ser suas. A família Fernandes, que
desembarcou em Altamira no final dos anos 70, adquiriu terras da União
ocupadas por colonos que tinham uma espécie de título provisório, o qual
deveria ser efetivado caso as terras se tornassem produtivas. Uma
prática comum dos grileiros da época era vender essas terras
improdutivas no momento em que o Governo retomava a posse dos terrenos.
Os imbróglios judiciais com a União permanecem até hoje.

Desde
que o INCRA decidiu assentar famílias nessas terras que a União
considera que são suas, entre elas as de Délio Fernandes e seus irmãos,
os conflito agrários se acirraram e os assentamentos vêm sofrendo
invasões. As famílias vivem sob constante ameaça. Algo que parece ser
tendência em todo o Pará, líder em assassinatos ligados a conflitos por
terra: cerca de 20 pessoas morreram desde 2015, ainda segundo a CPT.
Irmão de Délio, o todo-poderoso Silvério Fernandes, fazendeiro e
pecuarista da região — ele diz que a família tem quatro propriedades que
somam 12.000 hectares —, acusa a irmã Dorothy e o padre Amaro de estimular invasões ilegais.
O sacerdote passou mais de 90 dias preso na penitenciária de Altamira,
denunciado pelo fazendeiro por delitos como associação criminosa,
ameaça, esbulho possessório (crime contra a propriedade), extorsão,
lavagem de dinheiro, entre outros. Foi solto no final de junho e, desde
então, reside na vizinha Altamira à espera da conclusão dos processos
penais — uma das denúncias, de assédio sexual, já foi arquivada pelo
Ministério Público.
Afastado de Anapu, diz ser vítima de
uma perseguição política e judicial patrocinada por Silvério Fernandes —
que preside dois sindicatos de produtores, foi vice-prefeito de
Altamira por oito anos e tentou se eleger deputado estadual em 2018 — e
outros latifundiários. "Quem grilou a região de Anapu foram eles, que
venderam essa terra onde Dorothy foi morta. Eles vão pegando terras e
vendendo. Precisam provar na Justiça que essas terras da União são deles
mesmo", acusa o padre. No fim dos anos 90, Silvério e Délio Fernandes
foram investigados no caso Sudam, esquema de desvios milionários do
organismo responsável por apoiar o desenvolvimento Amazônia. Além disso,
a família foi condenada por crimes ambientais que somam quase 30
milhões de reais em multas.
A grilagem à qual o sacerdote se refere é uma das principais atividades ilegais da região de Altamira e seus arredores.
Mais de 80% dos produtores e agricultores não possuem os títulos
definitivos de suas terras, algo que os próprios sindicatos do setor
reconhecem, devido à falta de uma regulamentação fundiária que se
arrasta desde que o regime militar começou a colonizar a região. Muitas
compras de terra pública estão emperradas na Justiça. Os especialistas
explicam que esse limbo legal estimula as invasões e vendas ilegais de
terra. Um processo perverso, geralmente patrocinado por endinheirados e
executado por trabalhadores pobres que buscam sua sobrevivência, que
consiste em invadir áreas de conservação, territórios indígenas,
comunidades tradicionais ou assentamentos de pequenos agricultores;
desmatar grandes áreas de selva amazônica; incendiar os escombros da
floresta; e, por fim, plantar capim e colocar cabeças de gado no lugar. O
território passa a ter novos donos. E, com a expectativa de que um dia a
situação seja regularizada pelo poder público, como vem sinalizando o
Governo Bolsonaro, poderá ser vendido a um preço alto. A especulação
imobiliária é, junto com a pecuária e o cacau, um dos principais
negócios da região do Xingu.
O casal Edinaldo e Zelma
Silva Campos, de 57 e 50 anos, respectivamente, contam estar sofrendo
ameaças de grileiros e milícias armadas que há anos invadiram a
comunidade onde vivem. "Homens armados encapuzados já invadiram barracos
e colocaram famílias para fora. Somos todos ameaçados de morte", conta o
homem, indignado com o grupo de cinco grileiros que "roubam madeira,
jogam capim e vendem e revendem a terra" do local. Por ser o presidente
da associação que reúne as 150 famílias — cerca de 750 pessoas — que
tradicionalmente ocupam o lugar, diz ser alvo das ameaças mais graves. A
última delas foi a de sequestrar o único filho do casal, de 15 anos.
"Eles acham que só assim vão parar nossa luta", afirma a mulher.

Edinaldo
pertence a uma família tradicional. Conta que seus pais e avós, que
viviam da borracha e da pesca, migraram no começo dos anos de 1970,
junto com outras sete famílias, para um território entre os rios Bacajaí
e Xingu, no município de Senador José Porfírio. "É uma terra muito boa e
muito fértil, com muita água, muita madeira, muito ouro, muita
diversidade florestal... E muito cobiçada", explica. Devido à pressão de
invasores, formou no começo dos anos 2000, depois que deixou o
Exército, a associação de famílias. O Estado do Pará, dono daquele
território de 28.000 hectares, reconheceu então que a ocupação e posse
daquelas pessoas no lugar era legítima.
Tudo indicava
que, ao final de todo o processo burocrático, concederia um título de
propriedade coletivo aos associados e seus futuros herdeiros. "Foi a
solução que encontramos para vivermos em paz. Mas ainda não nos deram o
título", afirma o Edinaldo, enquanto mostra dezenas de documentos
públicos e Boletins de Ocorrência que provam seu relato. Acredita que
pressões políticas nos organismos públicos vêm impedindo a regularização
final do lugar. Enquanto isso não acontece, a pressão da grilagem
aumenta. "Eles já derrubaram 6.000 hectares, segundo os dados de 2018.
Das 150 famílias, restaram 40 espremidas no cantinho. A maioria foi
mandada embora. Estão aqui na cidade esperando para voltar", conta o
homem, que vive em Altamira e não pisa em sua comunidade há seis meses.

Seu
objetivo final é implantar um ambicioso projeto agroextrativista,
desenvolver a agricultura familiar e formar uma cooperativa para
conseguir crédito junto a bancos e vender os produtos ali desenvolvidos.
Tudo isso conservando a floresta sob a promessa de seguir uma
exploração sustentável. "A luta está emperrada por causa de uma
morosidade tremenda do poder público. A cada verão a pressão aumenta e
exaure o recurso natural para fazer dinheiro fácil. Podemos organizar
pesquisas e viabilizar descobertas para a humanidade no território, que
pode acabar virando um grande deserto com toda essa pressão", argumenta
Zelma. "Esse projeto é minha vida. Já foram na minha casa me oferecer
dinheiro, mas eu quero a terra. Temos que acreditar, mas não é fácil",
encerra o marido.
É possível um modelo mais sustentável?
Marcelo
Salazar coordena o Instituto Socioambiental (ISA) em Altamira, uma ONG
que promove o desenvolvimento de uma nova economia na região. Apesar de
trabalhar principalmente com comunidades indígenas e extrativistas, fala
da importância de que médios e grandes agricultores estejam envolvidos.
"Há grandes fazendeiros que não apostam na predação a qualquer custo ou
na especulação imobiliária. Muitos vêm investindo em consórcios
florestais numa linha de diversificação da produção, conciliando com a
preservação da floresta", explica. Ele cita o cacau como exemplo. Seu
crescente cultivo fez com que a região de Altamira superasse Ilhéus, na
Bahia, como produtora. "E as pessoas estão descobrindo que não precisava
ter desmatado para plantar cacau. O produto mais valorizado é o cacau
sombreado, plantado no meio da floresta. Os produtores mais modernos vão
nessa direção, fazendo intervenções cirúrgicas na mata".
O
grande problema, acrescenta, é a necessidade de mais tecnologia e
canais de comercialização. "São coisas que faltam muito na região. Não
necessariamente é algo caro, mas precisa de um ambiente favorável a
isso. Seria o papel do Governo, algo que buscamos desempenhar aqui".
Mesmo
tentando criar um ambiente de promoção de negócios da floresta, Salazar
afirma que há obstáculos como a legislação e a grande quantidade de
isenções e incentivos econômicos para a pecuária e a monocultura. "Os
compradores estão distantes, então é preciso trazer incentivos para
atrair indústrias cosméticas, alimentícias, da borracha,
farmacêuticas...", afirma. Com a usina de Belo Monte
veio a promessa de uma nova economia na região. "Mas a obra acabou
reforçando o que já existia", opina Salazar. Mesmo quem trabalha no
agronegócio tem dificuldades de se modernizar na região de Altamira. "Na
Amazônia, apenas 13% das terras desmatadas possuem alta produtividade,
incluindo as cidades amazônicas. O resto é área de baixa produtividade
ou abandonada. É estarrecedor. Cai o discurso de que é preciso desmatar
para produzir. É o velho discurso de quem, na verdade, quer ganhar
dinheiro com a especulação, o grande mercado da região".
conteúdo
Felipe betim
Altamira
El País
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