O artigo publicado em 23 de outubro de 2019 pela revista Nature
representa um marco na história da computação: a equipe da Universidade
da Califórnia em Santa Bárbara, liderada por John Martinis, anunciou
ter superado, com seu próprio computador quântico, a capacidade
computacional dos maiores supercomputadores do mundo. O grupo
patrocinado pela Google relata como seu dispositivo resolveu em 200
segundos um problema aritmético para que um computador convencional
necessitaria 10 mil anos. A IBM contradisse essa afirmação, ressalvando
que seu supercomputador Summit, o maior do mundo, poderia ter realizado a
façanha em dois dias e meio. Ainda assim, o computador de Martinis e
equipe é mais veloz. A seguir, alguns aspectos dessa tecnologia visionária. Bits, qubits e o gato de Schrödinger O
atual mundo computacional é digital, consistindo em dígitos binários,
ou bits. Na prática, eles podem ter o valor de 0 ou 1, correspondendo
aos dois estados da carga eletrônica dos transistores e chips. O mundo
da física quântica é muito mais complicado: os bits quânticos, ou
qubits, não só podem assumir 0 e 1 simultaneamente, como também todos os
estados intermediários. Uma moeda lançada oferece uma ilustração
aproximada: enquanto com o bit digital ela pode ser cara ou coroa – ou 0
ou 1 –, o qubit é como se ela ainda estivesse girando sobre a mesa,
portanto seu estado só se decidirá quando tombar. Esse paradoxo
foi descrito em 1935 por Erwin Schrödinger, usando o exemplo de um gato
preso numa caixa com uma substância radioativa letal. Do lado de fora,
não há como saber se ele está vivo ou morto, portanto mantém os dois
estados simultaneamente: só ao se abrir a caixa ele assumirá um estado
fixo. Na física, isso acontece ao se realizar uma medição, dando fim ao
estado quântico. Entrelaçamento quântico Não
há como compreender o entrelaçamento quântico empregando a lógica
física convencional. Albert Einstein o descreveu como "ação
fantasmagórica à distância". É quando os estados de dois sistemas
quânticos (como qubits) são correlacionados – eles têm o mesmo estado –,
mas só enquanto não sejam determinados. No modelo anterior, é
como ter duas moedas girando ao mesmo tempo e, não importa a distância
que as separe, elas assumem sempre o mesmo estado. Esse entrelaçamento
quântico se desfaz no momento em que uma delas cai, fixando seu estado. O
mesmo se aplica ao gato de Schrödinger: entre duas caixas com dois
gatos, pode haver um entrelaçamento quântico – mas só enquanto nenhuma
das duas tiver sido aberta. Potência computacional exponencialmente crescente Como
qubits podem assumir diversos estados ao mesmo tempo, eles são também
capazes de desempenhar mais operações aritméticas do que os bits
convencionais. Teoricamente, a potência dos computadores
quânticos cresce exponencialmente com a quantidade de qubits. Como a
curva de crescimento é cada vez mais íngreme, bastaria incrementar
ligeiramente o número dos qubits para que o poder computacional aumente
rapidamente. No entanto a prática é diferente, pois é necessário
preencher uma série de condições para que o sistema funcione: a margem
de erro deve ser mínima; o entrelaçamento quântico entre os qubits tem
que funcionar perfeitamente, senão mesmo as menores irregularidades de
funcionamento causam o colapso da potência computacional. Portanto
o desafio para os engenheiros é não só incluir cada vez mais qubits nos
chips, mas também manter a precisão. A Google desenvolveu, para esse
fim, um processo próprio de correção de erros com uma acuidade de
99,99%. O "lustre"
Forma do computador quântico lhe valeu o apelido "lustre"
À
primeira vista, o computador quântico lembra um lustre gigante feito de
tubos de cobres e cabos. É também assim que os especialistas chamam a
estrutura: "lustre". Seu núcleo contém um chip supercondutor em que os
qubits se dispõem como num tabuleiro de xadrez. O computador quântico da
Google tem 54 qubits, embora um deles não tenha funcionado. Os
qubits são capacitores mínimos feitos de nióbio, um elemento químico tão
duro quanto o titânio. Quando se faz suas cargas oscilarem, eles não
têm estados fixos, semelhante às moedas que giram. Entre eles estão
acopladores ajustáveis, consistindo de ressonadores, pequenas antenas
que reagem a micro-ondas. O chip supercondutor está localizado
num campo eletromagnético de micro-ondas, que opera a temperaturas
próximas do zero absoluto. No computador quântico da IBM, por exemplo,
ela é de -273,135ºC, só sendo alcançada imergindo-se todo o "lustre" num
tanque de hélio líquido. Compatibilidade com sistemas operacionais? O
software dos computadores quânticos não pode ser, em absoluto,
comparado aos digitais binários. Para testar o desempenho de seus
protótipos, a Google desenvolveu um complicado problema matemático
envolvendo números aleatórios, com o fim de exigir capacidades
computacionais cada vez mais complexas e abrangentes. Um aparelho
convencional teria logo ficado sobrecarregado. Visionários
esperam que os dispositivos quânticos sejam um dia capazes de decifrar
as codificações criptográficas mais complexas. Eles poderiam também
realizar simulações melhores, ser a base de sistemas de controle de
tráfico e de outras aplicações envolvendo big data. Entretanto,
tudo isso é mais ficção do que ciência. No momento, ainda não está à
vista a possibilidade de os computadores quânticos existentes assumirem
qualquer das tarefas úteis que os supercomputadores já desempenham. Pesquisa básica Atualmente,
a pesquisa se encontra no ponto em que os especialistas estão mostrando
que o princípio funciona. Fazendo-se uma analogia entre o
desenvolvimento dos computadores quânticos e o dos aviões, este seria o
momento em que os Irmãos Wright experimentavam com um planador de
fabricação própria – ainda se está muito longe de um jato de
passageiros. Não está provado, por exemplo, que um computador
quântico seja capaz de funcionar estavelmente por horas, dias ou mesmo
anos. Eles também empregam uma lógica computacional fundamentalmente
diferente da dos dispositivos clássicos. O software tem que ter sido
projetado especificamente para aproveitar os efeitos quânticos que a
máquina tem a oferecer, senão é inútil. Em termos práticos, isso
significa que os programas escritos agora servem exclusivamente para
testar os novos computadores e para pesquisa básica, mas não para
resolver problemas do mundo para além da mecânica quântica. E assim
provavelmente permanecerá nas próximas décadas.
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