Há pouco mais de 15 dias Ana Paula* diz que consegue, ao menos, voltar a viver. Durante os últimos três meses e meio, a investigadora de polícia de 40 anos chegou no limite do que pode ser considerado emocionalmente suportável. Quando entrou na Polícia Civil, há cinco anos, Ana Paula não imaginou que seria afastada dos trabalhos por depressão e pensamento suicida. O trabalho tornou-se pesadelo por uma série de fatores exaustivos dentro do distrito de polícia.
De acordo com a pesquisa “Uma análise
crítica sobre suicídio policial”, feita pela Ouvidoria de São Paulo em
parceria com os Conselho Federal e Regional de Psicologia, só entre 2017
e 2018, 78 policiais cometeram suicídio em São Paulo. Desse total, 17
eram da polícia civil. A Organização Mundial da Saúde adverte que a
situação é considerada epidêmica a partir de 10 suicídios para cada 100
mil pessoas. Na polícia civil, a taxa chega a 30, ou seja, um número
três vezes acima do recomendado, já que a corporação conta com 28 mil
policiais.
Ana começou a adoecer quando chegou no ápice do seu sonho.
Depois de passar pelo setor administrativo do IML (Instituto Médico
Legal) e pelo cargo de escrivã, ela conquistou o ofício de investigadora
de polícia. Dentro dos distritos, ela ficou assolada ao saber que
durante os plantões faltava água e papel higiênico. Da escassez material
veio o assédio dentro
do ambiente de trabalho. Ana Paula chegou ao ponto de ser transferida
de delegacia depois de recusar um pedido que colocava a sua própria
segurança em risco. Esse caso específico Ana chama de “a gota d’água”.
O
caso aconteceu quando o distrito em que Ana trabalha estava sem
sistema. Um caminhão havia derrubado os cabos de internet da região. Ela
estava de plantão, de 12 horas, junto com o delegado e o escrivão.
“Naquele dia tinha o caso de uma violência doméstica. E a mulher estava
visivelmente machucada. Não tem como retornar depois para fazer o B.O.
Não dá”, explica à Ponte.
O delegado, que tem a voz
máxima dentro da delegacia, repassou a seguinte ideia: Ana Paula deveria
pegar a viatura caracterizada, conduzir o escrivão até outra delegacia
com sistema, retornar ao seu distrito e depois de um tempo voltar para
buscar o colega de trabalho. A investigadora negou a proposta, para ela
não existia a menor possibilidade de dirigir uma viatura caracterizada
sozinha e colocar sua segurança em risco.
“Se você se
depara com uma ocorrência em andamento, você vai fazer o quê sozinha? Se
atentam contra a viatura? Você tomou um tiro, você pede apoio? Então,
na minha negativa eu falei: ‘Não, é perigoso’”, relembra.
O
delegado entendeu que Ana não estava se protegendo e, sim, mostrando
uma possível fragilidade feminina e respondeu: “Ah, se mulher não dirige
viatura sozinha, então tem que ser comunicado que não dá para trabalhar
com mulher em plantão”. Para ela, “o machismo afeta o homem, porque se ele não for ele é frouxo.”.
A
pesquisa divulgada pela Ouvidoria mostra que a principal causa de morte
entre os policiais civis é o suicídio. Essa mesma polícia não tem
programa de saúde mental. “As instituições precisam entender o apoio à
saúde mental dos policiais não como custo, isso é um investimento do
trabalho”, enfatiza o ouvidor Benedito Mariano.
Estresse
inerente à função, transtorno pós-traumático, falta de suporte
psicológico, depressão, conflitos internos da corporação, problemas
financeiros e familiares, rigidez e isolamento social são, para Mariano,
as principais causas de suicídio entre os policiais.
Alexandre
Félix Campos, investigador e militante do movimento Policiais
Antifascistas, vai um pouco além na questão de saúde mental dentro da
Polícia Civil e critica os nortes que, segundo ele, guiam a segurança
pública brasileira: a militarização e a criminalização. “Policial não
tem que agir no combate ao inimigo. A polícia é uma parte integrante da
gestão da cidade. A polícia tem que atuar como cidadão. Garantindo os
direitos alheios e os seus direitos. Infelizmente essa não é a nossa
realidade. A nossa realidade é uma simulação de guerra”, pontua à Ponte.
Foram
necessários 15 anos trabalhando como policial para Alexandre entender
que estava doente e precisando de ajuda. O sonho que ele almejava desde
pequeno passou a confrontar valores dos quais ele mesmo fazia parte.
Filho de pai motorista e mãe dona de casa, o investigador não conseguia
entender como alguém com as mesmas características que as suas era
considerado inimigo do Estado.
“Eu venho da periferia de
São Paulo, sou do extremo leste, do bairro de Guaianazes. E essa
política de segurança pública entende que eu devo combater, exterminar um inimigo
e esse inimigo, que eles inventam, é exatamente o cara que nasceu no
mesmo bairro que o meu, que tem o mesmo histórico de vida que eu. Então,
não tem como não adoecer”, complementa.
O correr pelo errado
Outro motivo de adoecimento, pontuado por Ana Paula, é a angústia de conviver diariamente com a corrupção e
não poder fazer nada. “Alguns policiais antigos, quando você não se
adequa ao meio, e aqui quando eu digo se adequar ao meio é quando você
não começa a fazer parte do assédio moral e do jogo de corrupção, eles
falam: ‘Ah, não. É que você não é polícia’. Não tem pra quem denunciar.
Isso faz parte da polícia e isso é muito triste de se ver”, ela explica.
Ana
também lembra o caso de um amigo, este da Polícia Militar. Além do
trabalho como policial, que ela chama de X, que exige 12 horas de
plantão, ele ainda cumpria 8 horas de um trabalho extra. Um dia, ela
perguntou para ele se valia a pena tudo aquilo: “Aí ele ergueu o queixo
como se ele fosse um herói, um gladiador e falou: ‘Eu tenho que fazer o
meu serviço se eu não fizer a sociedade vai ficar pior'”, conta.
Para
ela, está claro que projetaram nele o mito do policial herói e não
trabalhador. “Ele está se destruindo, é um policial que fere direitos humanos,
porque vai para a rua e se tiver oportunidade vai matar. E quem ganha
com isso?”, questiona. “Pegaram uma pessoa de boa índole e transformaram
em um potencial assassino.”.
A pesquisa também mostra
que a maioria dos suicídios são cometidos em dias de folga o que, para
Ana Paula, faz total sentido. O trabalho do plantonista exige cuidado e
atenção, fazendo com que o profissional controle as suas emoções.
“Quando você sai dali, aquilo tudo vem na sua cabeça. Automaticamente
você senta, demora para relaxar, e aquele mundo desaba em cima de você”,
explica.
Arma: objeto suicida e renda extra
De
acordo com a pesquisa da Ouvidoria de São Paulo, 83% dos casos de
suicídio policial, entre 2017 e 2018, foram por arma de fogo. Um objeto
que, além de ser essencial para a profissão, garante uma renda extra aos
policiais. Os chamados “bicos” são feitos fora do horário formal de
trabalho e complementam os salários.
De
acordo com o último levantamento da Secretaria da Fazendo e
Planejamento de São Paulo, de 2018, as classes especiais de escrivães e
investigadores da Polícia Civil têm um teto salarial de R$ 5 mil. Já na
Polícia Militar, o teto salarial inicial chega a R$ 4.253,00, que condiz
com a função de subtenente.
São os próprios salários que
fazem os policiais usarem o armamento para serviços extras, como o de
segurança particular. Acontece que quando o profissional submete a um
tratamento psicológico, ele pode perder a sua arma. Ou seja, perde
também a renda extra.
Nesse ponto, Rogério Giannini,
presidente do Conselho Federal de Psicologia, acredita que uma polícia
menos armada é um modelo a ser seguido. “Eu creio que quando nós olhamos
para outras experiências de outros países, em sociedades mais
equânimes, mais justas, com polícias não armadas, você tem tanto índice
de violência como índices de suicídio mitigados”, explica. “A violência
tem que ser exceção na sociedade e não regra”, acrescenta.
Em
um dos momentos mais delicados da depressão de Ana Paula, ela escreveu
um depoimento ao seu superior explicando a situação, dizendo que estava
no seu limite a assumindo a vontade de se matar.
“Policiais
lidam com o pior da sociedade, em todos os sentidos, e você tem um cara
que tem uma arma na mão. Como você trata dessa maneira uma área tão
importante?”, ela questiona.
A Ponte questionou a SSP
(Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, gerida pelo general João
Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB),
sobre o relatório. De acordo com a pasta, as polícias Civil e Militar
possuem sistema de apoio e atendimento psicológico para seus agentes: o a
Divisão de Prevenção e Apoio Assistencial no DAP (Departamento de
Administração e Planejamento) auxilia os policiais civis, enquanto a PM
tem um Sistema de Saúde Mental com psicólogos e assistentes sociais.
“Todos
os policiais paulistas são atendidos pelo Hospital do Servidor Público
Estadual e pela rede conveniada pelo Instituto de Assistência Médica ao
Servidor Público Estadual (IAMSPE), disponível em todo o Estado”,
explica o posicionamento da SSP, destacando que “as recomendações da
ouvidoria serão avaliadas pelas áreas técnicas da pasta”.
(*) A investigadora pediu que identidade dela fosse preservada.
conteúdo
Mariana Ferrari (Ponte)
El País
Esta matéria foi originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo
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