Os ancestrais de Daniel Fermino da Silva, 40, seguravam a chibata e também apanhavam no tronco. Traficavam escravos e também faziam a tenebrosa viagem da África para o Brasil nos porões dos tumbeiros, os navios negreiros. “Fiquei surpreso quando descobri que do lado da minha mãe eu tinha ascendência de famílias nobres de São Paulo, donas de escravos com sobrenomes tradicionais, e do lado do meu pai, de negros cativos [escravizados]”, explica o engenheiro paranaense.
A
história de Silva, que conseguiu rastrear quem eram e onde moravam seus
antepassados escravizados, é uma exceção, quase uma gota d’água no
oceano. Isso porque após a promulgação da Lei Áurea, em 1888, o então
ministro da Fazenda Rui Barbosa ordenou a queima de documentos relativos
à posse de escravos. Eram livros de matrícula, documentos tributários e
aduaneiros que traziam parte da história e identidade dos membros da
diáspora africana. O intuito de Barbosa, segundo historiadores, foi
evitar que os ex-senhores de escravos conseguissem pedir indenização
após a libertação dos cativos –o que teria um efeito desastroso para as
finanças do país. O efeito colateral foi apagar boa parte dos dados
disponíveis sobre pessoas escravizadas no Brasil, diferentemente do que
ocorre nos Estados Unidos, onde o Governo possui os arquivos relativos a essa fase brutal de sua história.
Ciente das dificuldades que enfrentaria, Silva percebeu que teria que sair do Paraná,
onde mora, para alcançar galhos mais altos de sua árvore genealógica. O
primeiro passo para rastrear suas origens negras foi visitar a cidade
onde o pai nasceu: Mirabela, em Minas Gerais.
“Descobri que havia duas comunidades quilombolas nos arredores, então
fomos até lá conversar com as pessoas”, diz. Lá ele se deparou com tios e
outros parentes próximos. A ideia era descobrir os sobrenomes dos
moradores, desde quando estavam no local e qualquer informação que
pudesse ajudá-lo na busca por antepassados mais distantes. “As
informações que consegui lá foram quase todas via história oral, muita
gente não sabe ler nem escrever. E aí muita informação se perde”, conta.
A pesquisa rendeu frutos. Seus antepassados escravizados eram
propriedade de dona Maria da Cruz e de seu marido Salvador Cardoso de
Oliveira, ricos latifundiários que possuíam grandes extensões de terra
no norte de Minas e que chegaram à região por volta de 1700. O casal,
inclusive, repassava o seu sobrenome para os escravos de sua posse.
Assim, os bisavós de Silva por parte de pai – Domingos Cardoso da Silva e
Maria Ferreira da Cruz – carregam o sobrenome dos seus proprietários.
Mas
nem todas as informações estão ao alcance do pesquisador, e nem todas
as perguntas têm resposta. Como seus ascendentes escravos se tornaram
livres, ainda é um mistério. “A Maria da Cruz se revoltou contra a Coroa
portuguesa e não quis mais pagar impostos. Como resposta, parte de suas
terras e posses, dentre eles os cativos [escravos], foram confiscados e
distribuídos em 1736”, diz Silva. A teoria é que nesse processo alguns
tenham conseguido fugir para a região onde hoje ficam as comunidades
quilombolas. Outros possivelmente conseguiram alforria de seus novos
senhores. De qualquer forma, um testamento assinado por Cruz, onde
consta o nome de um parente de Silva, é o documento mais antigo que
comprova sua ancestralidade.
Enquanto algumas lacunas dificilmente serão preenchidas,
certas descobertas são motivo de tristeza para Silva. "Descobri que
minha trisavó por parte de pai era negra de olhos verdes, o que
evidencia os estupros
e relacionamentos não consensuais dos senhores com os escravos. É uma
lembrança triste para quem sabe o que quer dizer na nossa história",
diz. O engenheiro não sabe quando seus antepassados negros chegaram ao
Brasil. A destruição dos documentos por Rui Barbosa e a prática comum
dos senhores de colocar seus sobrenomes nos cativos tornam essa tarefa
praticamente impossível. Mas Silva decidiu fazer um teste de DNA que
indica de qual país da África atual eles vieram. "Minha herança genética
negra vem basicamente de Serra Leoa", diz.
A
pesquisa dos ancestrais negros também fez com que Silva se confrontasse
com a triste realidade racista brasileira. "Depois do que vi nas
comunidades quilombolas eu questiono o quanto existe de mobilidade social no Brasil.
Vi gerações de parentes que vivem numa situação econômica e social
ruim, sem melhora nenhuma de avô para pai, de pai para filho", lamenta.
O outro lado da moeda
Os
ascendentes de Silva por parte de sua mãe estão no Estado de São Paulo
desde o descobrimento. "O meu antepassado mais longínquo, o português
Cosme Fernandes Pessoa, conhecido como Bacharel Mestre de Cananeia,
morreu em 1520 em São Vicente, no litoral paulista", conta. Ele é
reconhecido na historiografia como tendo sido traficante de escravos que
foi enviado ao Brasil como punição por crimes cometidos na terra natal.
Outra parte da família materna chegou ao país por volta de 1710 e se
assentou em Minas Gerais, tendo fundado Itabira. Eram judeus da
península Ibérica que fugiam da inquisição. O personagem mais
emblemático desse galho da árvore é a dona Eugênia Andrade. "Ela foi
dada em casamento aos 13 anos de idade para meu trisavô Patrício
Custódio de Menezes, de 27. Na noite de núpcias, não rolou nada porque
ela era muito nova. Frustrado, ele deixa a esposa no quarto e vai atrás
das escravas", diz. "Se for pegar os irmãos dos meus tataravós, todos
também tinham escravos nas lavouras de café".
Outra
descoberta insólita veio à tona nas pesquisas de Silva: "Patrício e
Eugênia tiveram escravos até bem depois de 1888, data da abolição.
Apenas quando vieram para São Paulo entra 1900 e 1905, deixaram os
escravos para trás". Isso comprova algo já apontado por historiadores: a
Lei Áurea não significou o fim da servidão, que se estendeu
extraoficialmente por muitos anos.
Dona Eugênia e seu
Patrício não foram os únicos senhores de escravos na árvore genealógica
de Silva. "A Eugênia teve um genro chamado Egídio Ferraz, meu bisavô. Os
avós dele eram donos de escravos na região de Capivari. Eu não sei
quantos escravos eles tinham, mas pelo tamanho da propriedade que eu
visitei não eram poucos", conta.
"Para mim é muito
importante conhecer minha origem", diz. Indagado sobre o que sente
quando reflete sobre as origens antagônicas, Silva responde de
bate-pronto: "Quando eu olho ao redor dentro da minha família negra, eu
vejo que não tiveram ascensão social. Isso colocou pontos de
interrogação na minha cabeça. Eu percebi que para alguns a meritocracia é
melhor do que para outros".
conteúdo
Gil Alessi
São Paulo
El País
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