O que motiva os linchamentos virtuais? E quais as consequências desses ataques no mundo real?



Você está viajando com amigos pelo interior do país. Em uma cidade, passam por um cemitério militar, cuja entrada está decorada com uma placa em que se lê: “Silêncio e respeito”. Você resolve parar e posar para uma foto quebrando as “regras”: com uma mão, faz um gesto para indicar que está gritando e, com a outra, mostra o dedo do meio. Um amigo posta a imagem no Facebook e te marca na publicação. O que era para ser uma simples brincadeira de gosto duvidoso vira um pesadelo: a foto viraliza e você começa a receber milhares de mensagens de ódio e ameaças de morte.

Páginas do Facebook são criadas com seu nome. Poucos dias depois, perde o emprego. Nos meses a seguir, desenvolve depressão e passa a se recusar a sair de casa.
Essa história aconteceu com Lindsey Stone, uma americana que, em outubro de 2012, posou para a foto no Cemitério Nacional de Arlington, onde estão enterrados veteranos de guerra e figuras políticas importantes dos Estados Unidos. A história de Lindsey é semelhante à da personagem Clara Meades em Odiados pela Nação, sexto episódio da terceira temporada de Black Mirror — na série, a mulher posta nas redes sociais uma foto em que simula estar urinando em um monumento de guerra. As coincidências terminam por aí, mas as marcas do ódio virtual podem ter tanta força quanto o ataque das abelhas-drones.

Diferentemente dos linchamentos reais, que partem de explosões de fúria, os justiceiros virtuais costumam agir de caso pensado.

A gênese do ataque

A vítima de um linchamento geralmente “cumpre a função ritual e sacrificial do bode expiatório”, escreve José Martins de Souza, sociólogo e professor da USP, no livro Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Em seu levantamento, Martins estima que haja um linchamento físico por dia no País, e que, nos últimos 60 anos, cerca de um milhão de brasileiros tenha participado de pelo menos um ato ou uma tentativa desse tipo.
Apesar das diferenças entre o linchamento físico e o virtual, a efeito de pesquisa, a distinção é menos acentuada: “o linchamento virtual também é real. A pessoa atacada tem família, vida social, não é só um avatar”, explica a pesquisadora da Unicamp Karen Tank Mercuri Macedo, que estudou o tema. “Acreditamos que o linchamento virtual muitas vezes acontece por falta de letramento digital. Se a pessoa não tem uso crítico da tecnologia, não conseguirá avaliar a fonte das informações que recebe e tem mais chances de ser um linchador ou linchado em potencial.”
Mas quem toma parte em linchamentos tem consciência do que está fazendo? Depende da situação. “Há um caso de um linchamento real no Rio de Janeiro em que uma idosa foi vista tentando arrancar o olho da vítima com uma colher. Quando foi levada para a delegacia, ela não lembrava o que tinha feito. Acreditamos que a fúria da multidão deixe vir à tona um comportamento que nem a pessoa entende”, explica Macedo. Mas a situação muda nas redes sociais, mesmo que envolva uma ação impensada. “A pessoa tem muito mais consciência do que está fazendo na internet do que na agressão física no mundo real, que geralmente parte de uma explosão súbita.”

Três casos de linchamento virtual com consequências bem reais

“NÃO PEGO AIDS, SOU BRANCA”
Em dezembro de 2013, a relações públicas Justine Sacco, de 30 anos, aguardava um voo de Londres para a Cidade do Cabo, na África do Sul, quando tuitou: “Indo para a África. Espero não pegar aids. Brincadeira! Sou branca.” Onze horas depois, ao desembarcar, Sacco descobriu que havia recebido mais de 100 mil mensagens de repúdio e ameaças de morte. Até Donald Trump tuitou pedindo sua demissão — algo que de fato aconteceu.

“MATE UM NORDESTINO AFOGADO”
Após a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2010, a estudante paulista Mayara Petruso tuitou uma série de comentários, entre os quais viralizou a frase: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!”. A forte repercussão levou Mayara a abandonar a faculdade e ser demitida. Ela foi condenada a um ano e cinco meses de prisão por incitação à violência.

FANTASIA: VÍTIMA DA MARATONA DE BOSTON
Em 2013, Alicia Ann Lynch, uma norte-americana de 22 anos, decidiu tuitar sua foto do Halloween. Sua fantasia: vítima do atentado na maratona de Boston, que matou três pessoas e feriu mais 264. A reação foi rápida: mensagens de ódio, informações pessoais e até fotos íntimas de Lynch vazaram na rede.

Por que linchamos?

Não raro, o linchamento virtual resvala para a violência física — é o caso de Fabiane Maria de Jesus, dona de casa assassinada em maio de 2014, no Guarujá, após ser acusada de praticar magia negra e sequestrar crianças. O boato surgiu na internet, junto a relatos falsos de testemunhas. Fabiane foi espancada até a morte por moradores, após ser confundida com um retrato falado da suposta sequestradora. O linchamento foi filmado e divulgado na internet, onde viralizou. Depois, descobriu-se que o retrato havia sido feito em 2012 por policiais do Rio de Janeiro, em um caso sem relação alguma com o boato.
O linchamento tem caráter vingativo, de punir com força redobrada o suposto crime original. É uma forma de a sociedade julgar a ineficiência dos procedimentos oficiais de justiça. “A hipótese mais provável é a de que a população lincha para punir, mas sobretudo para indicar seu desacordo com alternativas de mudança social que violam valores e normas de conduta tradicionais”, escreve Martins. “O linchamento não é uma manifestação de desordem, mas de questionamento da desordem.”
Esse questionamento muitas vezes é provocado por um dos maiores gatilhos para o linchamento: a intolerância. “Todas as pessoas que já fazem parte de minorias vão continuar sendo marginalizadas na internet, embora tenhamos por lá essa sensação de igualdade. Existe sempre um poder, um grupo mais privilegiado controlando os outros”, ressalta Macedo. “Se você não se encaixa no grupo homogêneo, precisa ser destruído, nem que seja só com palavras. Não existe mais essa fronteira fixa entre o real e o virtual.”
A intolerância é, grosso modo, uma das bases para o ataque de grupos organizados e genericamente definidos como haters. Todos estão sujeitos aos seus ataques, especialmente se defenderem alguma causa considerada polêmica. É o caso de ativistas feministas (veja mais abaixo) e militantes políticos, ou defensores de pautas como a legalização das drogas ou do aborto. Para Macedo, “a ideia deles seria preservar alguns valores socialmente construídos, tidos como certos. Nessa lógica, deve-se ‘destruir’ o que pensa diferente, que seja uma ameaça aos bons costumes”.

Crime coletivo

Três anos depois, apenas cinco pessoas foram condenadas pelo assassinato de Fabiane, com penas variando entre 26 e 40 anos de prisão, dentre dezenas que podem ser vistas no vídeo divulgado. A legislação brasileira ainda não tipifica o crime de linchamento: a característica fundamental das penas ainda é individualizar o crime, não o considerando em contexto coletivo.
Mas a penalização para o linchamento virtual e físico pode se tornar mais rigorosa com o projeto de lei 7544/14, do deputado Rubens Pereira Júnior (PCdoB-MA), que foi aprovado em março na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. O projeto prevê aumentar em 1/3 a punição para a “incitação ao crime” via internet ou outro meio de comunicação de massa. “Todos os que compartilham ou comentam no linchamento deveriam responder criminalmente, mas a dificuldade de rastrear acaba focando a punição na primeira pessoa que o publicou”, diz Macedo.

Entrevista: Lola Aronovich


Lola Aronovich é professora da Universidade Federal do Ceará e autora de um dos maiores blogs feministas do Brasil. Ela vem recebendo ameaças há seis anos e já registrou 11 boletins de ocorrência.

Quando as ameaças começaram?
Meu blog fez dez anos em janeiro de 2018. As ameaças começaram entre 2010 e 2011. Desde então, elas vêm sendo muito frequentes. Ontem mesmo um rapaz de Aracaju gravou um vídeo com um amigo em que me xinga e me ameaça de morte. Em 2016, esse mesmo indivíduo publicou uma foto de um revólver, com munição, e uma passagem para Fortaleza [onde Lola mora]. Ele disse que viria até a minha casa me matar (eles têm e divulgam meu endereço residencial) e depois se suicidaria.

Como os ataques chegam até você?
Algumas ameaças chegam por email, outras por comentários não aprovados no meu blog, outras no Twitter. A maior parte vem de um chan (fórum anônimo) criado em 2013 por um rapaz que foi preso em 2012 e permaneceu mais de um ano na cadeia por seus crimes de ódio. Quando foi solto, voltou a fazer o mesmo de antes. Ele e seus comparsas atacam juízas, delegadas, jornalistas, advogadas, professoras. Eu fiquei sabendo do chan porque seu autor me enviou o link várias vezes.

Qual foi o episódio mais assustador que você já viveu?
Não tive episódios assustadores, porque nunca fui atacada fisicamente. Pelo contrário, nas palestras que dou por todo o Brasil, sou recebida com muito carinho. Mas alguns são surreais, como um misógino gravar um vídeo (mostrando o rosto!) dizendo ser meu filho. Nunca vi o cara, nem sei o nome dele, e ele diz que eu queria abortá-lo quando fiquei sabendo que o feto era masculino, mas minha mãe não deixou. Outro episódio foi quando criaram um site de ódio no meu nome em que diziam que eu havia realizado um aborto numa aluna em uma sala de aula na universidade! E teve gente que acreditou. É absurdo.

Você já tomou alguma medida para se proteger?
Eu fico num dilema: vale a pena acompanhar as ameaças e planos de ataque (mesmo que nunca sejam concretizados) ou é melhor deixar para lá e correr o risco de ser pega de surpresa? Sinceramente, não sei. É terrível que a gente tenha que se acostumar com esse tipo de ataque, mas a gente se acostuma. Durmo bem à noite, não tenho medo. Mas estou cansada. São inúmeras denúncias, 11 boletins de ocorrência, inquéritos, e nada é feito. Há um inquérito aberto na Delegacia da Mulher de Fortaleza. A deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) apresentou um projeto com nome de “Lei Lola”, baseado no meu caso, exigindo que a PF investigue casos de ameaças a mulheres online. Eu torço para que a lei seja aprovada e cumprida, pois a verdade é que não temos proteção alguma.

Você sabe quem são as pessoas que atacam você? Elas costumam se esconder atrás de fakes ou dão seus nomes reais?
Uma boa parte eu sei quem são, tenho seus nomes, números de documentos e endereços. As polícias civil e federal e a Abin [Agência Brasileira de Inteligência] têm os nomes de muitos outros faz tempo. Não adianta muito processá-los porque eles não trabalham, não estudam, não têm nada no nome deles. Já as centenas de perfis no Twitter que me agridem (a maior parte sem necessariamente me ameaçar de morte) são quase todos falsos. É uma luta desigual, pois eu sou uma pessoa de verdade, com nome completo, endereço e fotos, e eles são covardes contando com o anonimato. Na vida real, cara a cara, eles não teriam coragem sequer de me dirigir a palavra.

O que você acha que motiva as pessoas a atacar outras pela internet?
O principal motivo é que as pessoas se sentem protegidas pelo anonimato para falar as piores atrocidades. Elas pensam que a internet é terra de ninguém. Acho que muitos promoveram bastante bullying na escola e não superaram a fase. Então, ao xingar uma mulher de baleia, de burra, de vagabunda (porque eles geralmente alvejam mulheres), conseguem relembrar aqueles “bons tempos”. Além do mais, essa prática cria a ilusão de fazer parte de um grupo, que se une por meio do ódio.


conteúdo
Ana Lourenço
super

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