Já se vai mais de um mês da prisão do ex-presidente Lula, peça central na luta anticorrupção
encabeçada pela Justiça brasileira, e o sentimento geral da nação não
parece ser exatamente a do conforto que se esperava de uma decisão dessa
natureza, que prometia sinalizar a ladeira acima do Brasil em busca de
um patamar mais ético. O encarceramento de Lula, no entanto, cristalizou
uma realidade, questionada por boa parte dos brasileiros, que estão
perdendo o fundamental para viver em sociedade: a confiança. As nuances ao redor de Paulo Vieira de Souza, mais conhecido como Paulo Preto, indicado como operador do PSDB, do ex-governador tucano Eduardo Azeredo e do outro emplumado, o pré-candidato Geraldo Alckmin,
explicam por que a Justiça atual mais aumenta uma fenda no Brasil
partido, em vez de entregar um alento de que tempos novos virão. Desde que o petista chegou à prisão de Curitiba,
esses nomes centrais do tucanato têm logrado se desviar da fúria
jurídica que aplacou o ex-presidente Lula em pleno voo, fazendo o lema “Justiça para todos” flertar com a sensação de um indisfarçável teatro. A pesquisa CNT/MDA divulgada nesta segunda mostra bem isso, quando 90,3% dos brasileiros dizem que ela não é igual para todos.
E por que chegamos a esse ponto? Porque não há mais verniz que
dissimule algumas percepções. Nos labirintos jurídicos do Brasil, por
exemplo, o ministro do STF Gilmar Mendes concedeu habeas corpus
na última sexta a Paulo Preto, que estava preso desde o dia 6 de abril.
Nem a acusação de que ele mantém contas suspeitas na Suíça, de um
aparente desvio de 7,7 milhões de reais de obras do Rodoanel, e o relato
de que ameaçou uma das testemunhas do processo, foram suficientes para
que Gilmar o detivesse. Também na terra dos vazamentos de trechos de processo para a
imprensa, e dos escrutínios venais do entorno do ex-presidente, o
sigiloso processo de Geraldo Alckmin que seguiu para o Tribunal Regional
Eleitoral, deixando a força tarefa da Lava Jato de São Paulo de mãos
abanando, secou a garganta de muitos brasileiros crentes do “para
todos”. São Paulo, principal centro econômico do país, por onde o
dinheiro circula de fato. Haveria aqui terra fértil para corruptores que
atuam em consonância com o poder público? Já em Belo Horizonte, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, uma
corte de segunda instância, teve a missão de julgar também no mês de
abril os recursos interpostos pela defesa do ex-governador Eduardo
Azeredo, pivô do mensalão mineiro, de 1998, denunciado em 2007. Sua
tentativa de questionar a sentença de 20 anos, dada em primeira
instância, foi brecada no mês passado, por um placar apertado, de 3 a 2.
Sua pena já havia sido confirmada no mesmo tribunal, mas por uma corte
de três desembargadores, sob o placar de 2 a 1. A falta de unanimidade
nesse julgamento abriu espaço para o tal recurso, os chamados embargos
infringentes, votado no dia 24 de abril. Acusado de desviar 3,5 milhões
de reais a título de caixa 2 ao superfaturar patrocínios a eventos
esportivos com dinheiro de estatais mineiras, Azeredo viu seu processo
demorar 11 anos para chegar às instâncias superiores, e duas décadas
para responder pelo crime do qual é acusado. Sem unanimidade sobre a sentença, o procurador de Minas Gerais Antônio Padova chegou a afirmar que se sentia constrangido de levar o ex-governador à prisão.
Além da solidariedade de seus julgadores, Azeredo ainda ganhou um
benefício extra no início deste mês. Sua defesa pediu que as notas
taquigráficas do processo sejam anexadas para esclarecer detalhes da
sentença, e com isso ele ganha tempo. Quanto tempo? Não se sabe. Mas se
passar do dia 9 de setembro, quando ele completa 70 anos, o Brasil pode
assistir a mais uma benevolência a seu favor. A partir dessa idade, os
réus podem ter a pena reduzida. Um salto para outra segunda instância, a de Porto Alegre, o Tribunal
Regional Federal da Quarta Região, famoso TRF-4, revela que ali não houve discordâncias entre os seus integrantes
ao analisar o processo de Lula. Ao contrário. Quando instados, em 24 de
janeiro, a acolher a sentença dada pela primeira instância – a do juiz
Sergio Moro, que condenou Lula a nove anos e meio de prisão pelo caso do
tríplex do Guarujá –, os três desembargadores gaúchos concluíram, por
unanimidade, que a pena deveria ser elevada a doze anos e um mês. Também
por unanimidade derrubaram embargos solicitados pela defesa do
ex-presidente. Prejuízo financeiro na sentença de Lula: 2,4 milhões de
reais, que seria o custo do apartamento e das obras que seriam
financiadas pela OAS, em troca de favores no caso Petrobras. Triplex
cuja posse consta do nome da OAS na hora de ser leiloado. Placar apertado versus unanimidade em duas segundas instâncias. Um levantamento da revista Época, feito com casos similares aos de Lula, mostrou que o tribunal gaúcho só teve unanimidade em 32% dos processos julgados dentro da Lava Jato.
Mostrou, ainda, que a pena do ex-presidente foi a mais severa já
aplicada por aquela corte, e também o tempo para julgamento de um preso.
Foram seis meses e meio, quando, em média, eles levam 18 meses para
julgar os casos da Lava Jato. Vá lá, vale o peso do réu, que se lançou inclusive a
candidato à presidência deste ano. Mas sob essa lente, por que a Justiça
brasileira não olhou até agora com a mesma severidade e alerta outro
candidato a ocupar o cargo de presidente, como Geraldo Alckmin? É
inocente? Não tem uma vírgula fora do lugar? Nem no seu partido?
Prove-se que este ou aquele partido são exemplares, para dar algum
parâmetro do que é Justiça nos tempos surreais que o Brasil está
vivendo. Porque com Lula preso, a urgência de provar que Por ora, o único que se vê é que os fatos que hoje se impõem dão
razão ao que era tratado como narrativa vitimista do PT. Afinal de
contas, não se sabe qual régua a Justiça está utilizando para
estabelecer o que é crime e o que não é neste Brasil novo em que Luana
Piovani acredita. Logo após a prisão de Lula no dia 7 de abril,
pesquisas apontaram um nó na opinião pública, que nada tem a ver com
ideologia petista ou não petista. Muito embora tenha se destacado que
uma maioria havia considerado a pena de Lula justa – 54%, segundo o Datafolha,
contra 40% que não concordam e 6% que não sabem – a pesquisa CNT desta
segunda, fala em 51% a favor. Há várias evidências de que os bem
intencionados procuradores e ministros do Supremo em levar os colarinhos
brancos para a cadeia estão tornando a Justiça menos confiável aos
olhos dos brasileiros. Embora a ciência política mostre que 30% da
população apoia Lula até debaixo d’água, outro levantamento do Ipsos
havia mostrado que 73% dos entrevistados concordavam com a afirmação de que Lula estava sendo preso porque poderosos não queriam que ele concorresse. A prisão de Lula, aliás, fez com que a população ficasse,
ironicamente, até mais simpática à sua figura, e um pouco menos à da
presidente do Supremo, Carmen Lucia, e à do juiz Sérgio Moro, como
mostrou o recente levantamento da pesquisa Ipsos.
A desaprovação a Lula caiu de 57% para 54%, e a de Carmen Lúcia e Moro
subiu igualmente de 47% para 49%. Mas, não é preciso se perder em
estatísticas. Basta conversar com pessoas que apoiam a Lava Jato e
torciam pela prisão de Lula para verificar que muitos estão sentindo
angústia e vergonha, até porque não se sentem confortáveis diante das
feições de ‘terra de ninguém’ que o país vive agora. As surpreendentes
buscas e apreensões, que não pouparam parentes do presidente, um
escrutínio de presentes que recebeu durante seu governo, e a vergonhosa
divulgação de áudios familiares sem conexão com os crimes, são memórias
que martelam a Lava Jato e que, se naquela época já soavam fora de tom,
hoje se mostram aberrações diante do andamento de outros casos. Há, sim, uma sensação de fracasso e de engodo com os demais
desdobramentos na seara política. O mais dramático ainda é o que se
conquistou com toda esta caçada subjetiva. O desprezo pela democracia
cresce, a ponto de praticamente metade do país enxergar com simpatia um
golpe apoiado por militares, como demonstrou um levantamento do
Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação: 47,8% apoiariam um golpe diante de um quadro de muita corrupção, contra 46,3% que não veem numa intervenção militar uma solução para nossos problemas. A Lava Jato e o Supremo vivem hoje a estranha realidade de não responder ao que se espera da Justiça. A pesquisa da CNT/MDA mostra que 52,8% da população considera
o Poder Judiciário pouco confiável, e outros 36,8%, nada confiável. O
conceito de Justiça conforta, liberta, e pacifica uma sociedade. A
nossa, ao contrário, está afetando diretamente a percepção do regime
democrático. E não se culpe a crise econômica, o partidarismo ou
qualquer outra escusa. Elegeu-se um inimigo comum, trabalhou-se
midiaticamente esse propósito, e deixou-se dormindo a investigação de
outros nomes graúdos. A severidade para um e a ponderação para outros
podem se diferenciar de uma instância para outra mas fazem parte do
mesmo poder Judiciário. Os fios que manejam este acochambrado de Justiça
geram um mal estar envergonhado impossível de engolir. É isso que as
pesquisas estão gritando.
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