Depois de longo período autoritário, a Constituição de 1988 fundou e estruturou nosso modelo de Estado Democrático de Direito. Os princípios e as garantias dos valores e instituições democráticos são mencionados textualmente quase 20 vezes e a atenção com o tema chega ao ponto de considerar crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
O princípio democrático e a participação direta dão corpo
ao propósito de envolvimento da população afetada nas decisões
estruturantes em áreas como educação, Previdência, cultura, meio
ambiente e saúde.
Nesse contexto, paulatinamente, vêm ganhando destaque os
conselhos de políticas públicas, que também têm previsão constitucional.
Com participação de órgãos do governo e da sociedade civil organizada,
são espaços qualificados para a discussão e deliberações em que, além de
exigir e fiscalizar a criação e a efetivação de políticas públicas, são
traçadas diretrizes, em diversas matérias.
Como a democracia também é um aprendizado, no âmbito destes conselhos temas sensíveis e fundamentais como saúde,
meio ambiente, trabalho escravo, inclusão de minorias, infância e
juventude, entre outros, vêm sendo aprofundados e tratados com
pluralismo e ponderação, num processo aberto e dialogado.
Agindo na contramão do modelo constitucional de democracia,
o decreto presidencial 9.759/2019, “extingue e estabelece diretrizes,
regras e limitações para colegiados da administração pública federal”. A
previsão é de que mais de 30 comissões sejam extintas.
Explicitando a que veio, em seu artigo 2º, informa o que estaria
contido no conceito de colegiado: “conselhos, comitês, comissões,
grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e qualquer outra
denominação dada ao colegiado”.
Para os remanescentes (somente os previstos em lei
que enumere suas competências e composição) e para os que vierem a ser
constituídos, o decreto estabelece regras rígidas sobre a forma de
criação, o número de membros, o período de funcionamento (1 ou 2 anos),
chegando a fixar a duração das reuniões (máximo de 2 horas), com a
possibilidade de acréscimo de mais 2 para votações.
O controle e a participação da sociedade sobre as políticas
públicas criadas e executadas pelo governo federal sofrerão
consequências cujo alcance ainda é difícil prever.
Já se anuncia que o decreto presidencial será questionado
judicialmente. Uma vez que se encaminha contrariamente ao propósito
constitucional, é possível que o decreto seja revogado. Mas, certamente,
representa solavanco que prejudica nossas práticas democráticas e o
nosso aprendizado na participação social. A reconstrução de colegiados
cujo funcionamento vinha em processo de maturação e aperfeiçoamento
demandará muito esforço.
Tomemos o exemplo do combate ao trabalho escravo. Após o caso “Zé Pereira” ter sido levado à Organização dos Estados Americanos,
o Brasil assumiu internacionalmente o compromisso de estabelecer
políticas públicas para combater essa terrível forma de exploração do
ser humano no trabalho. Desde meados da década de 90, os sucessivos
governos, de diferentes alinhamentos ideológicos, incrementaram a
política pública que se tornou referência mundial.
Em 2003, criou-se a CONATRAE, Comissão Nacional para
Erradicação do Trabalho Escravo, composta por Ministérios e entidades da
sociedade civil de diferentes segmentos. Em 15 anos, além de
importantes discussões, a estratégia de atuação evoluiu para o
monitoramento de dois planos nacionais, promoção de campanhas de
conscientização, notas públicas, afirmando posicionamento claro em
relação a essa chaga social que envergonha o Brasil.
As reuniões, marcadas pelo debate propositivo e respeitoso,
resultaram em compromissos conjuntos, ações legitimadas, congregando
instituições com visões variadas como a Confederação Nacional de
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Comissão Pastoral da Terra
(CPT).
Decisões tomadas a partir de complexas discussões
colegiadas, com a escuta efetiva de diferentes esferas da sociedade
civil organizada são mais lentas, mais trabalhosas e difíceis. É a pior
forma de decidir para os seduzidos pela verdade única, pela iluminação
dos encastelados e pela supremacia das próprias convicções pessoais. A
rejeição ao diálogo é um modo de externar a repulsa ao pluralismo e ao
entendimento, que dão muito trabalho mas são inafastáveis da convivência
democrática.
A advertência de Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”, segue sendo luz para recaídas autoritárias.
conteúdo
Christiane Vieira Nogueira
Leomar Daroncho
El País
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