Em vez de se adaptar à mudança dos ventos políticos na Argentina e adotar um tom mais conciliador, Jair Bolsonaro partiu para o ataque contra Alberto Fernández, que muito provavelmente será o próximo presidente do país vizinho. No dia seguinte à vitória do peronista e de sua vice Cristina Kirchner nas primárias, em agosto, Bolsonaro alertou que o Rio Grande do Sul poderia se tornar uma “nova Roraima” caso o que chamou de “esquerdalha” vencesse o pleito — em referência à chegada de milhares de migrantes venezuelanos ao norte do país. "Bandidos de esquerda começam a voltar ao poder" na Argentina, reiterou o presidente, alguns dias depois.
À primeira vista, a postura do presidente brasileiro
pode parecer incompreensível. Porém, faz parte de uma estratégia
coerente, que tem orientado a política externa do presidente Bolsonaro e
que já era visível antes mesmo de tomar posse. Para Bolsonaro, uma das
principais utilidades da política externa é a incitação de seus
seguidores mais radicais. A melhor maneira de garantir a mobilização
constante é a evocação de ameaças reais ou imaginárias, sejam elas
domésticas ou externas.
Esta lógica explica por que
Bolsonaro fala de ameaças e inimigos com tanta frequência, mais
recentemente durante a cerimônia de integração do submarino Humaitá,
quando advertiu para a existência de supostos “inimigos internos”.
Trata-se de uma guinada radical para um país que tradicionalmente se
orgulha de sua ausência de inimigos.
A regra de ouro dos populistas é a mesma de sempre: quanto mais inimigos poderosos que buscam enfraquecer a pátria, melhor. Trump
elegeu os muçulmanos — que ele supostamente viu celebrando os atentados
do 11 de setembro —; os imigrantes mexicanos — a quem chamou de
estupradores no discurso de lançamento de sua campanha —; e os chineses —
acusados de causar a desindustrialização americana. É por isso que,
mesmo com uma trégua temporária com Pequim na guerra comercial,
o presidente americano não se interessa por uma resolução permanente do
confronto: isso o faria perder um bicho-papão crucial para manter sua
base engajada.
Seguindo o modelo de Trump, Bolsonaro
tentou projetar uma ameaça chinesa durante a campanha, mas nem os
bolsonaristas mais fiéis morderam a isca: a presença chinesa, apesar de
grande, soa abstrata demais para a maioria da população brasileira para
servir como mote.
O governo escolheu promover, portanto, o
governo Maduro, o governo cubano, a ONU, os ambientalistas e os
globalistas como principais ameaças ao Brasil, mas se mantém atento a
integrar outros atores na lista. Quando o presidente francês criticou o
Brasil pelos incêndios na Amazônia, Bolsonaro identificou a oportunidade de incluir a França.
Essa lógica é tão dominante que ele nem sequer mencionou o país europeu
durante a recente cerimônia de integração do submarino Humaitá — apesar
da importante participação da França na construção. Mais relevante do
que fazer diplomacia era preservar a narrativa da ameaça francesa à
soberania nacional.
Sendo assim, não surpreende que Bolsonaro enxergue na provável eleição do ex-chefe de gabinete de Nestor Kirchner
uma oportunidade para criar uma narrativa ainda mais potente: a de que o
Brasil encontra-se rodeado de esquerdistas, fazendo de seu governo um
dos últimos defensores da liberdade e dos valores cristãos no
continente. Para ele, é secundário que, sem uma relação azeitada entre
Brasília e Buenos Aires, nenhum projeto regional possa avançar. Também
não lhe interessa que tensões bilaterais possam dificultar a relação
comercial. Um estudo recente da FGV estima que a crise no país vizinho subtraia 0,5% do PIB brasileiro.
Inicialmente,
Fernández cometeu um erro de principiante e reagiu às provocações de
Bolsonaro, chamando o mandatário brasileiro de “racista, misógino e
violento”. Isso criou exatamente o tipo de bate-boca no qual Bolsonaro
se sente à vontade e que contribuiu para sua chegada ao Planalto. Mas o
argentino logo se deu conta da armadilha e, desde então, não responde
mais às acusações vindas de Brasília. Caberá às forças moderadoras do
governo brasileiro — incluindo o vice, Hamilton Mourão — tentar minimizar o estrago já feito na relação bilateral.
A
partir de dezembro, Brasil e Argentina devem assumir posturas
divergentes no que diz respeito aos dois temas geopolíticos mais
relevantes na América Latina de hoje: a crise na Venezuela e a ascensão da China na região. Enquanto o Brasil integra o Grupo de Lima, que reconhece Juan Guaidó
como presidente da Venezuela, é provável que a Argentina adote uma
postura semelhante à do Uruguai e do México, reconhecendo a legitimidade
de Nicolás Maduro.
Além
disso, Fernández muito provavelmente adotará uma postura mais crítica
em relação a Trump, e já há um consenso em Washington de que o
presidente argentino dificilmente cederá a pressões dos EUA de limitar a
influência chinesa na região. Isso deve aumentar ainda mais a pressão
de Trump para que Bolsonaro o ajude a conter o avanço chinês na América
Latina.
Nos últimos duzentos anos, a dinâmica entre
Brasil e Argentina foi pautada sobretudo pela rivalidade. A
transformação desse antagonismo em cooperação e, posteriormente, em
amizade foi iniciada pelos governos Sarney e Alfonsín, nos anos 1980. Na
época, a guinada teve como símbolo a assinatura de um acordo de
cooperação nuclear que até hoje consiste em uma das maiores conquistas
da história da diplomacia brasileira. Negociado secretamente por um
grupo de diplomatas hoje vistos como sendo pertencentes a uma “geração
dourada”, o acordo foi revolucionário, inesperado e mudou a relação
entre Buenos Aires e Brasília em todos os sentidos. Trinta anos depois, é
preciso que ambas as sociedades se mobilizem para preservar os grandes
avanços feitos desde então na relação bilateral mais importante do
continente sul-americano.
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Oliver Stuenkel
El País
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