Nos últimos artigos tenho insistido na necessidade da formação de um “centro democrático progressista”. O que é isso? Desde logo, não se trata de um “centrão”, ou seja, de um agrupamento de pessoas que dominam legendas de partidos e que, na prática, se unem para apoiar ou rejeitar propostas do governo, cobrando um preço clientelístico. O “centro democrático” tampouco pode ser um agrupamento anódino que ora se define como favorável ao povo e esbanja recursos, como os populistas, ora se comporta de modo austero, com bom manejo das contas públicas, mas sem olhar para o povo, como os “neoliberais”. Então o que seria?
Na
 prática o risco maior do liberalismo conservador, de caráter 
autoritário, é o de derrapar para formas abertamente não democráticas de
 decidir e assim aumentar o fosso entre dirigentes e dirigidos, abrindo 
espaço para manifestações populares antagônicas ao poder. Já o risco do 
progressismo é se transformar em populismo e, com o propósito ou o 
pretexto de servir ao “povo”, desorganizar as finanças públicas, levar à
 inflação e ao desemprego. O país cai na estagnação, abrindo espaço para
 a “direita” (ou seja, para formas disfarçadas ou abertas de 
autoritarismo).
Não terá sido um vai-e-vem entre estas formas de liberalismo,
 autoritarismo e populismo (mais do que o risco de fascismos ou 
comunismos) o que vem caracterizando boa parte das formas políticas do 
mundo contemporâneo? Desse vai-e-vem escapam os países nos quais 
liberdade e democracia não formam parte do ethos nacional (os que não 
são ocidentais ou ocidentalizados). A oscilação acima referida, e mesmo a
 dúvida sobre o valor da democracia representativa, tem aumentado muito,
 afetando nações de tradição liberal. Não faltam autores que chamam a 
atenção para estes desdobramentos: a crise das democracias, como morrem 
as democracias, o povo contra as elites, e assim por diante, dão título a
 muitos dos volumes que tratam dos fenômenos políticos contemporâneos.
Por
 trás desse desaguisado estão os novos meios produtivos e as formas 
contemporâneas de comunicação, que moldam as sociedades. A primeira vez 
que me dei conta disso foi em maio de 1968, quando eu era professor da 
universidade de Paris, em Nanterre. Anos mais tarde, procurando teorizar
 a respeito, disse no discurso em que transmiti a presidência da 
Associação Internacional de Sociologia em 1986 que os fios desencapados 
da sociedade podem se tocar de repente, produzindo curtos-circuitos fora
 da polaridade tradicional “proprietários versus trabalhadores” e dos 
partidos que no passado os representavam. Havendo comunicação em rede as
 faíscas que se ascendem num ponto se propagam para os demais e o 
protesto atravessa os limites entre classes e segmentos sociais 
contaminando amplos setores da sociedade. Essa dinâmica do protesto e a 
velocidade da sua expansão já eram perceptíveis em 1968. Foi só quando a
 TV e o rádio passaram a cobrir as manifestações estudantis que estas 
entraram em contato com as negociações sindicais que antes se davam à 
parte e à distância.
Que dizer agora, quando a internet e
 as redes conectam as pessoas e saltam as organizações? Se Descartes 
dizia “cogito, ergo sum” (penso, logo existo), hoje a frase síntese é 
outra: estou conectado, logo existo. Mais ainda: as forças produtivas 
contemporâneas, com robôs e inteligência artificial, aumentam a 
produtividade, concentram a renda e não geram empregos na proporção da 
procura por trabalho, a despeito da redução da taxa de crescimento da 
população. E, graças à internet, muitos ficam sabendo do que ocorre.
Não
 será este o fantasma por trás dos “coletes amarelos” de Paris, dos 
partidários do Brexit na Grã Bretanha ou dos eleitores de Trump que 
querem ver os Estados Unidos great again? E não haverá risco de em 
“nuestra America” confundir a Frente Ampla (eventualmente vitoriosa no 
Uruguai), ou os peronistas argentinos e, agora as manifestações no Chile,
 que lembram o Brasil de 2013, e mesmo no Equador ou na Bolívia, como 
uma luta tradicional da “esquerda” contra a “direita”, como se ainda 
estivéssemos nos tempos da Guerra Fria? A guerra agora é outra: menos 
desigualdade, fim da corrupção política, mais empregos e melhores 
salários. E quando há diminuição do ritmo de crescimento, como lembrava 
Tocqueville sobre a Revolução Francesa, a insatisfação eclode forte, 
como atualmente no Chile.
Dito isso, o centro liberal 
precisa ser progressista não apenas porque a igualdade de oportunidades e
 a garantia de um patamar de condições de vida dignas para todos são 
essenciais para uma democracia estável e uma sociedade civilizada, mas 
também porque vivemos outro momento do capitalismo no qual as políticas 
públicas devem ser complementadas pela ação da sociedade civil. É do 
interesse da maioria existir um governo ativo e com rumo. Capaz de 
respeitar as regras do mercado, mas também os interesses e necessidades 
do povo. E estes não se resolvem automaticamente na pauta econômica, 
requerem ação política e ação da sociedade.
Não será esse
 o miolo de um centro radicalmente democrático e economicamente 
responsável? Talvez, mas na vida política não basta ter ideias: é 
preciso que alguém as encarne. Ou aparece quem tenha competência para 
agir e falar em nome dos que mais precisam ou a esfinge nos devora.
conteúdo
Fernando Henrique
El País

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