No momento em que enfrenta ainda a fase inicial da epidemia de coronavírus ―com 957 mortos e mais de18 mil infecções―, o Brasil se prepara para atravessar dois feriadões nos próximos dias em um contexto em que os brasileiros começam a relaxar o isolamento social e a aumentar a circulação nas ruas em todos os Estados do país. O afrouxamento individual se soma à escassez, até o momento, de medidas mais duras dos governantes para reduzir o fluxo de viagens. E começa a ser observado em um momento em que o país sequer entrou na fase mais aguda da crise, quando há transmissão descontrolada da doença, mas cujo sistema de saúde já sofre a pressão da pandemia.
“É perigosíssimo a população começar a relaxar nesse momento. Estamos ainda no começo de ascensão da curva, num cenário de defasagem dos casos confirmados
extremamente importante. Se as pessoas pensarem que já fizeram o
sacrifício por três semanas e que agora podem relaxar, pode ser uma
catástrofe”, afirma Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em
Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. O pesquisador
desenvolve um trabalho de monitoramento com cientistas de outros Estados
e têm um portal para monitoramento da disseminação do vírus pelo país.
Alves destaca que o caso de São Paulo, o primeiro hub de disseminação do
coronavírus no Brasil, é emblemático para entender os riscos.
Desde que o Estado decretou oficialmente as medidas de isolamento social,
inclusive com fechamento de comércio, o índice de isolamento da
população chegou a 60%. Duas semanas depois, mais precisamente na última
quarta-feira, caiu para uma média entre 49% e 50%. Isso significa que
menos da metade da população paulista segue o distanciamento social e
está distante dos 70% que os especialistas que assessoram o governador João Doria
(PSDB) consideram necessário para frear a disseminação do coronavírus e
dar tempo para que o sistema de saúde seja ampliado e tenha condições
de receber os pacientes mais graves com a Covid-19.
Para
conseguir chegar a essa meta ―que Alves considera até conservadora, já
que defende o isolamento de 80% da população―, o Governo de São Paulo
anunciou nesta quinta-feira (9) um sistema de monitoramento inteligente.
Basicamente é um acordo com quatro operadoras de celular para monitorar
aglomerações e índices de isolamento da população durante a quarentena.
No entanto, o governador preferiu não adotar medidas mais duras para
evitar que as pessoas viagem nos feriados que se aproximam. À noite, em
entrevista à TV Globo, Doria falou que cogita a aplicar multas e até
pena de prisão caso o isolamento não alcance os índices esperados pelo
Governo no fim de semana. “Vamos fazer o teste neste final de semana. Se
não elevarmos esse nível, que hoje é de 50%, para mais de 60% e
caminharmos para 70%, na próxima semana, não apenas o Governo do Estado,
como também a prefeitura de São Paulo, tomarão medidas mais rígidas”,
anunciou.
Duas primeiras semanas de junho
Mesmo que São Paulo não tenha atingido o índice que as autoridades de saúde considera necessário, o próprio Ministério da Saúde já reconheceu que o distanciamento social reduziu os índices de transmissão
no Estado em um boletim publicado no último fim de semana. Dias depois,
a pasta passou a divulgar gráficos de suas projeções sobre quando
esperar um pico de infectados, mesmo com as medidas de distanciamento.
Nos dois cenários ―com isolamento seletivo
ou ampliado― se espera uma subida forte da demanda para as duas
primeiras semanas de junho. Nesses casos, porém, os casos seriam mais
distribuídos entre as semanas, o que daria fôlego ao sistema de saúde.
Sem nenhuma medida de restrição, a curva de casos esperada seria muito
mais íngrime e poderia chegar um pouco antes, ainda em maio.
Domingos
Alves evita fazer projeções de quando esse pico deve acontecer ou mesmo
quanto tempo ainda poderá durar a quarentena, mas pondera que relaxá-la
agora pode trazer prejuízos ao combate à pandemia. O pesquisador diz
que está preocupado com as recentes diretrizes
do Governo Federal no sentido de relaxar a quarentena para cidades cuja
ocupação de leitos hospitalares esteja inferior a 50%. Ele explica
que é preciso olhar o panorama regional do sistema de saúde. “Esse
relaxamento, dado que não conhecemos o cenário real pela defasagem dos
testes, pode ser ponto inicial de crescimento grande e de perda de
controle nos municípios”, explica. O Governo admite que há uma déficit
de teste e que só 63.000 mil pessoas foram testadas para Covid-19, no
país, com
O pesquisador diz que, ao monitorar os
municípios paulistas, percebeu que já existem polos de infecção
crescentes no interior do Estado, especialmente em cidades próximas às
principais estradas paulistas. “Estamos na segunda onda, com crescimento
já exponencial para vários municípios. No entorno de São Paulo,
você vê claramente que os municípios que apresentaram casos ficam
alinhados às principais estradas. E vários municípios tiveram polos a
partir disso”, acrescenta. O pesquisador cita como exemplo cidades como
Santos, Ribeirão Preto, Botucatu, São José do Rio Preto, Araçatuba,
Campinas e São José dos Campos.
“Esses municípios podem se tornar novas São Paulo, com o crescimento da epidemia”,
afirma. É nesse contexto que o pesquisador chama atenção para a
estrutura hospitalar dessas cidades, diferente da capital. No caso de
Ribeirão Preto, é uma cidade de referência que historicamente recebe
pacientes de municípios menores pela sua estrutura hospitalar. “Mas há
municípios no entorno que eventualmente não terão essa estrutura.
Ribeirão Preto recebe pacientes de várias cidades vizinhas e até do sul
de Minas. Se essas cidades pequenas relaxarem a quarentena porque têm
50% dos leitos hospitalares livres, pode inflacionar rapidamente
Ribeirão, que é onde tem UTI”, explica.
O caso de São Paulo é emblemático para explicar a importância do isolamento social,
mas a mesma lógica pode se estender por outros Estados, que têm
estruturas hospitalares até mais precárias. Na última semana, o Amazonas
entrou no grupo de Estados brasileiros que estão na iminência de entrar
para a fase de transmissão descontrolada da doença. A capital Manaus,
que é referência para o atendimento hospitalar dos municípios do
interior e das comunidades indígenas e ribeirinhas, já disse que atua no
limite de sua capacidade de UTIs, onde são tratados os casos mais
graves da Covid-19.
No Ceará, outro Estado que pode estar na transição para a espiral de casos de coronavírus, a situação também está difícil. O governador Camilo Santana já começou a solicitar leitos de unidades privadas
e tem feito um apelo em suas redes sociais para que a população se
abstenha de viajar no feriado. “O isolamento social é para evitar o
colapso do sistema. Se em alguns lugares chegar a 100% da capacidade, a
pessoa que adoecer e tiver comprometimento grande, vai recorrer a qual
serviço? O que acontece sempre, em todos esses municípios menores, é
transferi-los para as regionais, que já estão com suas capacidades
comprometidas”, explica Domingos Alves.
O pesquisador
evita projetar quanto tempo pode durar a quarentena, mas teme que, caso
as medidas sejam relaxadas agora, o brasileiro precise considerar a
possibilidade de chegar ao final do ano com medidas restritivas, já que
os Governos poderão adotar ações até mais duras para conter a
disseminação e dar tempo para que o sistema de saúde se recupere.
“Tem gente que acha que o isolamento não está funcionando porque a
epidemia continua subindo. E ela vai subir mais, só que numa velocidade
menor. É como uma mãe que diz ao filho que não faça algo porque pode ser
pior. Daí o filho diz: mas nem aconteceu. Não aconteceu porque você
ficou em casa", afirma.
Domingos Alves defende que, no
mundo inteiro há evidências de que o isolamento funciona e que nenhum
sistema de saúde está preparado para o coronavírus. Ele pondera que o
distanciamento social é um momento sensível não só para os brasileiros, mas para a humanidade.
Mas, enquanto não houver um retrato mais real e atual da situação, é
difícil prever quando as regras de isolamento deverão ser relaxadas. “A
população tem que entender que, se a gente tomar essas medidas
restritivas para ontem, a gente consegue entrever para os próximos meses
um dia que as autoridades vão falar que a gente pode relaxar. Se não
fizermos isso ―ainda mais com o inverno chegando, e o retorno de outras
viroses sazonais― em novembro ou dezembro podemos ainda ter que estar
discutindo a mesma quarentena”, finaliza.
conteúdo
Beatriz Jucá
São Paulo
El País
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