Moro é esperado na sede da Polícia Federal em Curitiba hoje (02), para prestar depoimento sobre as acusações, feitas por ele ao anunciar que estava deixando o governo, de que Bolsonaro tentou interferir no trabalho da PF.
E o presidente Jair Bolsonaro chamou seu ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro de “Judas” na manhã deste sábado, 2, ao postar um vídeo com o título “Quem mandou matar Bolsonaro?”. “Os mandantes estão em Brasília?”, escreveu em seu perfil no Twitter. “O Judas, que deporá, interferiu para que não se investigasse?”
Sergio Moro, o mítico juiz da Lava Jato, a operação policial contra a corrupção político-empresarial que levou os até então intocáveis à prisão pela primeira vez no Brasil, começando pelo carismático ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, é hoje, já fora da magistratura, uma das figuras nacionais mais polêmicas, discutidas e analisadas pelos especialistas em política.
Sua personalidade hermética poderia ser analisada à luz do deus Jano da mitologia romana, aquele das duas caras ou duas portas, o deus das guerras, o que deu nome ao primeiro mês do nosso calendário: janeiro.
Moro acaba de voltar às primeiras páginas dos jornais por ter renunciado ao cargo de ministro da Justiça do Governo do ultraconservador Jair Bolsonaro. Saiu fazendo graves acusações ao presidente, de querer enquadrar ao seu serviço e de sua família a Polícia Federal, que, se comprovadas, poderiam fazê-lo perder o cargo.
Moro,
que havia entrado no Governo ultraconservador como técnico, sem ser
político de profissão e nunca ter se exposto ao juízo popular das urnas,
hoje é visto como mais político do que muitos outros e aparece nas
pesquisas para possíveis candidatos à presidência com um apoio muito superior ao de seu ex-chefe Bolsonaro.
Moro surpreendeu quando deixou seu posto de brilhante juiz criminal com fama internacional para
ser ministro de Bolsonaro, cujos gostos golpistas já eram conhecidos.
Agora acabou de abandonar o Governo batendo a porta, criando um caso
político. Talvez seja por isso que ele é visto por muitos como um
personagem difícil de catalogar e analisar.
Ao deixar o
Ministério da Justiça, Moro levanta uma série de perguntas sem resposta
sobre se foi vítima ou cúmplice do Governo de corte fascista de
Bolsonaro. Cúmplice dos desmandos de um Governo que perdeu em pouco
tempo o prestígio nacional e internacional por seus repetidos ataques às instituições democráticas
às quais o presidente gostaria de colocar um ferrolho para governar com
as mãos livres como mais um caudilho dos já conhecidos neste
continente.
Aqueles que preferem ver na conduta do ex-juiz um cúmplice dos desmandos autoritários
e racistas do presidente Bolsonaro lembram que é muito difícil que,
antes de aceitar o cargo de ministro da Justiça, o juiz Moro ignorasse a
biografia do capitão reformado Bolsonaro, conhecido durante seus quase
30 anos como obscuro deputado no Congresso por seus desvarios
autoritários, sua nostalgia pela ditadura, seu fascínio pelos
torturadores e seu desprezo pelas mulheres e por todos os diferentes sexuais. Era uma biografia pública.
Se
antes de sua grave decisão de entrar em um Governo de corte fascista
Moro quis queimar as naves de sua brilhante história como magistrado
para entrar na aventura do poder político, é difícil ver sua saída hoje e
seu enfrentamento com o presidente ao qual havia dado sua confiança
como mais uma vítima de um Governo que maneja seus ministros como peões de um xadrez ao seu gosto e capricho. Moro não chegou ao Governo como um desprevenido.
Por
isso há quem prefira vê-lo como cúmplice do presidente no ano e pouco
em que permaneceu como poderoso ministro. Cúmplice no sentido de que nem
antes de entrar no Governo nem dentro dele podia ignorar o caráter do
presidente. E que aceitou implicitamente, sem nunca enfrentar, as
investidas e os arroubos autoritários do presidente.
Já
dentro do Governo, e quando parte daqueles que tinham votado no capitão
aposentado começou a abandoná-lo diante de seus excessos, Moro não
pareceu se sentir desconfortável naquele ambiente que se revelava cada
vez mais sufocante para a democracia.
Além disso, chegou a
aplaudir o presidente com palavras de elogio como estas, no dia 2 de
dezembro de 2019: “O presidente Bolsonaro é uma pessoa muito íntegra.
Todos que o conhecem testemunham (…). É claro que as pessoas sabem que
casos de má conduta e corrupção podem surgir em uma máquina gigantesca
da administração geral, mas não há paralelo com o que aconteceu no
passado, em que havia esquemas sistemáticos de corrupção incorporados na
administração pública”.
Eram tempos em que já começavam a aparecer as investigações de casos de corrupção dentro da própria família do presidente, que para Moro devem ter parecido pouco se comparados aos escândalos de corrupção durante os Governos de esquerda.
E
se Moro fechou os olhos para a corrupção da família do presidente, não
foi menos complacente com seus arroubos autoritários e com a política de
punitivista de Bolsonaro, para quem “bandido bom é bandido morto”. O projeto do pacote anticrime
proposto no ambicioso programa de Moro no Governo era tão duro que
parecia querer emular seu chefe. Chegou a propor um indulto aos
policiais que, ao matarem um inocente, o fizessem sob nervosismo ou
medo. Chegou ao limite de propor uma lei para “deportar” estrangeiros
que vivem no Brasil e fossem considerados perigosos.
Dias
atrás, antes de sua renúncia como ministro, Moro chegou a ser corrigido
em seu afã punitivista pelo próprio presidente. Foi por causa das
normativas para punir quem desobedecesse às regras da quarentena
devido à pandemia. Moro, o mais duro, chegou a propor que os
desobedientes fossem detidos pela polícia na rua e levados “algemados”
para a prisão. “Critiquei Sergio Moro na época. Existe uma lei sobre
abuso de autoridade que fala sobre o uso de algemas”, comentou
Bolsonaro, que acrescentou: “Você precisa ter uma posição clara sobre a
prisão, sobre algemar uma mulher na praia, o comerciante no Piauí, as
pessoas humildes defendendo seu feijão com arroz”.
Moro tentou fechar um olho ou minimizar os escândalos de corrupção que estavam começando a salpicar os filhos do presidente, a esposa deste e as relações pouco republicanas do presidente
com as milícias que assombram o Rio, que sempre foi a base eleitoral de
toda a família Bolsonaro. E a pergunta que tantos faziam era por que,
uma vez dentro do Governo, uma figura pública e com o seu prestígio, não
saiu antes, ao descobrir, se é que já não sabia, a gravidade da força
antidemocrática do novo presidente.
Talvez devido a essa
ambiguidade de Moro, que deixou o Governo quando talvez fosse tarde
demais, sua figura de mito poderia ser comparada ao deus Jano.
As
mitologias gregas e romanas são, de fato, ricas em simbologias que
sobreviveram até hoje. Um mito romano original que não tem antecedentes
na Grécia é, efetivamente, o de Jano, o deus das duas caras.
A força do deus romano chegou a dar nome no Ocidente ao primeiro mês do ano, janeiro, que deriva de seu nome latino, Ianuario.
Os meses do calendário começam, então, com o nome do deus romano que
era visto como um mito da guerra. E em Roma ainda leva seu nome uma das
colinas mais famosas, a de Janículo.
O mito do deus Jano,
devido à sua peculiaridade de ambivalência, é usado para definir
personalidades duplas e misteriosas. E duras, por ser o deus das
guerras. Portanto, esse mito é usado para simbolizar qualquer tipo de
ambiguidade política ou pessoal.
Até a psiquiatria usou o
mito do deus romano para descrever a patologia da dupla personalidade e
de tudo relacionado ao que aparece sem contornos de personalidade
definidos.
Os aspirantes ao poder não deveriam esquecer
que entre a iniquidade e o silêncio, entre a resistência e a
cumplicidade, existe apenas o inferno. E querer pretender conseguir o
poder amparado na astúcia ou oscilando em uma ambiguidade calculada pode
levar ao pior dos fracassos.
Os malabaristas do poder
que se movem nas sombras, que a Bíblia já admoestava, deveriam lembrar:
“Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da
minha boca.” (Apocalipse 3:16)
A ambiguidade nunca será mestra de sabedoria, muito menos de credibilidade política. Ao contrário, ecoa a covardia.
com conteúdo
Juan Arias
El País
Veja
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