A indecisão recorde do voto feminino, uma mina desprezada na campanha eleitoral



A maior reviravolta política na vida da estudante Isabella Miranda, de 19 anos, ocorreu na semana passada, enquanto comia arroz com feijão na cozinha de sua casa, em Ribeirão Pires, no cinturão operário da Grande São Paulo. Sentada na cadeira de sempre, à mesa de sempre, com as notícias passando na TV, ouviu seu pai, de 52 anos e que vive de bicos de construção e pintura, proclamar algo inesperado: que na próxima eleição pretende votar no agitador ultradireitista Jair Bolsonaro.

O que a abalou não foi o nome do candidato, que está há meses subindo nas pesquisas: “Vale lembrar que meu pai é homofóbico, ele é preconceituoso, então ele apoia o Bolsonaro porque acha que o Brasil precisa de ordem. Ele estava bem feliz com a decisão dele”, resigna-se Isabella. O que a desconcertou foi como se sentiu ao ouvir que alguém tão próximo já escolheu seu candidato, quando ela mal pensou nas eleições, exceto por ouvir há meses o burburinho de que serão históricas. De repente, se viu sozinha. “Agora penso constantemente em política”, confessa. “Estou me sentindo irresponsável por não saber em que votar, por não estar me identificando com ninguém… Não sei a origem desse problema.”
Essa origem não está numa cozinha de Ribeirão Pires, e o problema tampouco é só de Isabella. As mulheres, que representam 52,5% do eleitorado brasileiro (77,3 milhões dos 147 milhões com direito a voto), chegam à campanha eleitoral mais afastadas dos candidatos que nunca: 34% não encontram um aspirante que as convença em um cenário com o ex-presidente Lula fora da disputa, segundo a última pesquisa Datafolha. Deste total, 25% pretendem apertar o botão “em branco” da urna, anular ou não votar em ninguém, e 9% ainda não sabem em quem votar —entre os homens, cogitam o voto em branco ou nulo 18%, e 3% estão indecisos—. São números inéditos nos 30 anos de democracia brasileira: superam o recorde do pleito presidencial anterior, em 2014, quando 16% das mulheres não tinham decidido o voto e outras 18% não estavam convencidas por nenhuma candidatura a esta altura. E deixam o país ainda mais distante do ponto de saída de 2006, quando no começo da campanha estimava-se em 12% o número de indecisas e 9% o das mulheres que pretendiam votar em branco. Nenhum dos 13 candidatos nesta imprevisível eleição conseguiu impressionar o grupo demográfico mais poderoso. Este fracasso revela a contraditória relação que a política brasileira mantém há décadas com as mulheres. Num país onde elas constituem a maioria do eleitorado, são também as menos representadas nos postos de poder. Em escala nacional, somam pouco mais de 10% da Câmara dos Deputados, e na política municipal há apenas uma vereadora para cada sete homens. A única mulher a ter presidido o Brasil, Dilma Rousseff, foi destituída do cargo num processo político em agosto de 2016.
O Brasil ocupa a 154ª. posição entre os 193 países do ranking de presença feminina na política, organizado pela União Interparlamentar: só está à frente de países árabes e de ilhas da Polinésia. “Estudos sobre representação simbólica indicam que, ao não se enxergarem na política, mulheres se sentem à parte do sistema”, observa Malu Gatto, pesquisadora de gênero e política brasileira na Universidade do Zurique (Suíça).
Some-se a isto a caótica natureza de uma eleição em que o candidato favorito, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está encarcerado, e seu Partido dos Trabalhadores se recusa a indicar um substituto. Isto deixou um panorama incerto, liderado por Bolsonaro, um machista irredutível (disse a uma deputada feminista que “não merecia ser estuprada” porque "era feia"), e vários personagens que ainda estão sendo conhecidos pelo público. “Mulheres tendem a assumir menos riscos, preferindo avaliar todas as informações disponíveis antes de tomar uma decisão. E o período pré-eleitoral neste ano está sendo particularmente complexo, conturbado pela quantidade de notícias, acontecimentos políticos e um maior número de candidatos visíveis de partidos que vão além do PT e PSDB”, diz Gatto.

Vice-presidentas no país dos feminicídios

Muitos candidatos se lançaram a uma corrida desesperada pelo voto feminino. Cinco dos 13 aspirantes —todos homens, exceto a evangélica Marina Silva e Vera Lúcia, mais vinculada à causa negra— anunciaram mulheres como candidatas a vice em suas chapas (Bolsonaro tentou, mas foi rejeitado por sua escolhida Janaína Paschoal e acabou indicando um homem). Conforme observaram vários cientistas políticos, a cifra é um recorde, mas ainda resta ver se trará o feminismo para o debate político. Numa recente entrevista, a senadora Marta Suplicy (sem partido) lamentou: “É um oportunismo ruim”.
Dessas candidatas a vice, só Ana Amélia, companheira de chapa de Geraldo Alckmin, trouxe para o debate público assuntos que afetam diretamente as mulheres. Mas não as cifras de feminicídios, que não param de crescer: 1.133 de um total de 4.539 mulheres assassinadas em 2017, segundo os últimos dados da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em seu lugar, Ana Amélia voltou ao velho tema do aborto (para postular-se a favor da Constituição), que mobiliza mais os homens do que as mulheres (eles fazem 61% dos comentários sobre o assunto nas redes sociais, segundo o jornal O Globo).
No primeiro debate entre os candidatos, há duas semanas, as mulheres ocuparam um papel igualmente minoritário. Bolsonaro as usou para soltar uma das boutades que o caracterizam: “As mulheres estão se dando melhor do que nós agora, daqui a pouco vamos querer o salário delas”. Ninguém se deteve mais tempo neste ponto. Pouco depois, Guilherme Boulos (PSOL) fez uma tímida tentativa de falar em igualdade e feminismo: “O machismo estrutural é um problema neste país”, disse. Mas nenhum outro candidato o acompanhou.
No segundo debate, foi Marina Silva quem tentou falar sobre as mulheres. Dirigindo-se a Bolsonaro, o recriminou: "Você acha que poder resolver tudo no grito, na violência. Nós somos mães. Nós educamos nossos filhos. A coisa que uma mãe mais quer é ver um filho ser educado para ser um cidadão de bem, e você fica ensinando para o nosso jovem que tem que resolver as coisas na base do grito, Bolsonaro". Três dias depois, a pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro havia perdido a intenção de voto de várias mulheres (13%, contra 28% dos homens) e a Datafolha, que saiu dias depois, apontava que entre elas a rejeição a seu nome tem crescido —desde junho, foram nove pontos percentuais a mais. Marina Silva, no entanto, aumentou seu apoio pela metade (de 10% para 15%, no Ibope).
Conseguir uma representação maior significa um avanço, mas não uma solução. Além do mais, esta vitória corre o risco de se tornar uma distração se não conduzir a mais mudanças. “Você não se reconhece na política”, lamenta a cientista política Ilona Szabó, fundadora do Agora, uma plataforma pela renovação política. “Eles têm buscado respostas fáceis. Continuam insistindo nas soluções mágicas, no herói, na força, e as mulheres já perceberam que não é isso que vai deixá-las mais seguras sem medidas de políticas em curto prazo. Então não nos reconhecemos no sistema, o que explica a apatia de muitas delas a esta altura da campanha.”
A mudança é urgente, mas é possível que já tenha começado. Isabella Miranda se inscreveu como mesária voluntária nas eleições. “Nunca votei. Aliás, tirei meu título no ano passado, quando completei 18: esperei até o limite porque não queria me envolver”, admite. “Mas é a minha primeira eleição. É uma responsabilidade muito grande.”


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Tom C. Avendaño
São Paulo
El País

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