Há mais de 50.000 anos, uma mulher neandertal e um homem denisovano
fizeram sexo e alguns meses depois ela deu à luz uma menina. Muitos
séculos mais tarde, numa gruta siberiana junto à cordilheira de Altai,
foram encontrados os ossos que deixou aquela menina híbrida, que teria
13 anos ao morrer. Há quase uma década se sabe que os neandertais,
denisovanos e humanos modernos tiveram descendência em algumas
circunstâncias, mas nunca havia sido encontrado um filho de um casal
misto. Nesta quarta-feira, 22, a revista Nature publica
o genoma do primeiro destes humanos. Uma equipe liderada por Viviane
Slon e Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva
de Leipzig (Alemanha), analisou o DNA
extraído de um fragmento de osso da jovem e concluiu que a mãe era
neandertal e o pai denisovano. A primeira vincula a adolescente à
linhagem de uma espécie muito conhecida, à qual se atribuem as primeiras
expressões artísticas conhecidas e que deixaram seus ossos e
ferramentas por toda a Europa.
Seu pai a transforma na descendente de um grupo muito mais misterioso,
conhecido só a partir das análises genéticas de pequenos fragmentos de
ossos encontrados unicamente na gruta russa de Denisova. Os genomas das
duas espécies, sequenciados também por Pääbo e seus colaboradores,
indicam que elas se separaram há mais de 390.000 anos. Entretanto,
continuaram copulando e procriando de forma pontual nos territórios onde
ambas as espécies compartilhavam fronteira. “Embora ainda não
conheçamos a anatomia dos denisovanos [só foram achados fragmentos de
ossos e dentes], acredito que, apesar de não serem iguais,
anatomicamente não seriam muito diferentes”, explica Juan Luis Arsuaga,
codiretor do sítio arqueológico espanhol de Atapuerca. “Os denisovanos seriam algo assim como a versão asiática dos neandertais”, acrescenta. Desde que as análises genéticas permitiram reconstruir a vida sexual
dos humanos ancestrais, comprovou-se que existiram relações ocasionais
entre as espécies do gênero humano que compartilhavam o mundo há dezenas
de milhares de anos. O genoma de Denisova 11, ou Denny, como foi
chamada a garota, mostra que a relação de seus progenitores não era o
primeiro cruzamento entre espécies da sua família. O pai também tinha
neandertais entre seus antepassados. As relações não se restringiram a essas duas espécies tão próximas.
Os humanos modernos fizeram sexo com neandertais em repetidas ocasiões
há pelo menos 100.000 anos, e hoje todos os habitantes do planeta, salvo
os subsaarianos, temos em nosso genoma DNA daquela espécie extinta. O
mesmo acontece com os denisovanos. Embora extintos há muito tempo,
deixaram parte de seus genes entre habitantes da Ásia e Oceania, e têm
também em seu genoma rastros de fornicação com uma espécie arcaica de
humanos que se separou da linha evolutiva humana há mais de um milhão de anos. Arsuaga tenta imaginar as circunstâncias em que aquelas relações entre espécies poderiam se dar, e recorda o que fazem outros mamíferos.
“Que lobos e chacais, ou duas espécies de ursos troquem genes é
relativamente frequente nas fronteiras dos territórios que ocupam”,
aponta. Mas esses animais não costumam fundir seus grupos. “Não acredito
que um grupo de neandertais e um de denisovanos se unisse para formar
um só grupo, e aí se dessem esses cruzamentos”, explica o
paleoantropólogo. Seria mais o caso de indivíduos isolados, excluídos do
grupo e que não tinham acesso a fêmeas de sua própria espécie. “Um lobo
marginal na Califórnia ou um que seja jovem pode se reproduzir com uma fêmea de coiote que encontrar disponível”, afirma. A possível relação entre aquele denisovano marginalizado e uma
neandertal que vinha do oeste ficou refletida na menina de Denisova,
algo que, embora já se soubesse que as espécies tinham tido prole comum,
é surpreendente. “Nunca pensei que teríamos a sorte de encontrar um
descendente direto dos dois grupos”, afirma Slon. Pääbo também considera
improvável a descoberta e imagina que, embora “talvez não tivessem
muitas oportunidades de se encontrar, quando o fizeram devem ter
copulado frequentemente, muito mais do que se pensava”.
Carles Lalueza, pesquisador do Instituto de Biologia Evolutiva de
Barcelona, também acha “realmente surpreendente” que tenha sido
encontrado um híbrido de primeira geração. “Isto poderia sugerir que os
cruzamentos eram frequentes, mas não sabemos, em parte porque todos os
denisovanos procedem da mesma cova”, afirma. Embora observe que “o
realmente revolucionário seria encontrar outro denisovano em outro
lugar, porque talvez estejamos estudando uma população marginal”. As incógnitas em torno daquela etapa da humanidade, quando os humanos
ainda não tinham imposto sua lei e pelo menos três espécies
tremendamente inteligentes compartilhavam planeta e fluxos, são
abundantes. No entanto, trabalhos como o publicado nesta quarta são uma
amostra de que a ciência
pode abrir janelas inesperadas para o passado. Em 2006, o pesquisador
Bruce Lahn, da Universidade de Chicago, propôs que neandertais e humanos
tinham intercambiado genes há 40.000 anos. Conforme contou então ao EL
PAÍS, as revistas Science e Nature recusaram-se a
publicar o trabalho porque consideravam que esse cruzamento era
impossível. Em apenas uma década, aquela visão sobre o sexo no
Pleistoceno e suas consequências ficou de pernas para o ar.
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