As seis tramas que são a base de (quase) todas as histórias já contadas



"Minha contribuição mais bonita à cultura". Assim foi como o romancista Kurt Vonnegut descreveu sua antiga tese de mestrado em antropologia, "que foi rejeitada porque era simples e divertida demais". A tese sumiu sem deixar rastro, mas Vonnegut continuou a promover a grande ideia por trás dela: "as histórias têm formas que podem ser desenhadas em papel gráfico".

Em uma palestra em 1995, Vonnegut esboçou vários arcos narrativos - os desdobramentos de ações dramáticas de uma história - em um quadro negro, traçando como a sorte do protagonista muda ao longo de um eixo que se estende de "boa" a "má". Esses arcos incluem: "homem no buraco", no qual o personagem principal entra em apuros, e em seguida sai dele ("as pessoas adoram essa história, elas nunca se cansam!"); e "o menino fica com a menina", no qual o protagonista encontra uma pessoa maravilhosa, perde-a, e depois a reencontra.
"Não há razão por que as formas simples de histórias não possam ser inseridas em computadores", ele ressaltou. "São formas lindas".
Graças a novas técnicas de mineração de texto, isto foi feito. O professor Matthew Jockers, da Universidade de Nebraska, e, posteriormente, pesquisadores do Laboratório de História Computacional da Universidade de Vermont, ambos dos EUA, analisaram dados de milhares romances. Com isso, eles chegaram a seis tipos básicos de histórias - também chamados de arquétipos - que formam os blocos de construção para narrativas mais complexas. São eles: 

Ascensão - Da pobreza à fortuna, ou de má a boa sorte
Declínio - Declínio de bom a mau, uma tragédia
Icarus - ascensão e depois declínio da sorte
Oedipus - declínio, ascensão e declínio de novo
Cinderela - ascensão, queda, ascensão
Homem no buraco - queda, ascensão 

Os pesquisadores se basearam na chamada análise de sentimento. Essa é uma técnica estatística comumente usada por marqueteiros para analisar posts de mídia social. Com base em dados públicos, a cada palavra é alocada uma "pontuação de sentimento". Dessa forma, uma palavra pode ser categorizada como positiva (feliz) ou negativa (triste), ou pode ser associada a até oito emoções mais sutis, como medo, alegria, surpresa e anseio. Por exemplo, a palavra "abolir" é negativa e associada à raiva.
Ao fazer a análise de sentimento em todas as palavras de um romance, poema ou peça e traçar os resultados em relação ao tempo, é possível perceber as mudanças de humor ao longo do texto, revelando um tipo de narrativa emocional. Embora não seja um sistema perfeito - já que foca em palavras isoladas, ignorando o contexto -, ele é surpreendentemente perspicaz quando aplicado a trechos maiores de texto.
As ferramentas para fazer análises de sentimento estão livremente disponíveis, e boa parte da literatura de domínio público pode ser baixada de bancos de dados online como o Projeto Gutenberg. A BBC Culture pesquisou algumas das histórias britânicas mais populares para tentar aplicar as seis formas narrativas.

A Divina Comédia (Dante Alighieri, 1308-1320)

Tipo de narrativa: ascensão

O poema épico de Dante conta sua jornada imaginária ao inferno, acompanhado do poeta Virgílio. Obviamente, as coisas começam mal na Divina Comédia, com uma pontuação baixa de sentimento que se afunda ainda mais à medida que a dupla desce aos círculos do inferno. Há traços de "um homem no buraco" na história, que acaba sendo literal em um texto tão alegórico como esse.
Tendo sobrevivido milagrosamente ao inferno, eles então escalam a Montanha do Purgatório onde as almas dos excomungados, preguiçosos e luxuriosos residem. E Beatriz - a mulher ideal de Dante - acaba substituindo Virgílio como companhia. A ascensão do casal ao paraíso é marcada pelo aumento da alegria à medida que o poeta compreende a verdadeira natureza da virtude, e sua alma se torna plena "do amor que move o sol e outras estrelas".

Madame Bovary (Gustave Flaubert, 1856)

Tipo de narrativa: declínio

Em dado momento da história de Flaubert, a dona de casa entediada e desleal - a protagonista, Emma Bovary - reflete que, se sua vida até então foi tão ruim, a parte a ser vivida será com certeza melhor.
Não é bem assim. Emma embarca em relações amorosas falidas e desesperadas, que oferecem apenas um breve respiro a um tédio angustiante. Bovary é uma mulher criativa casada com o homem mais sem graça do mundo, acumula dívidas exorbitantes e acaba se suicidando com arsênico.
Seu marido de luto, após descobrir suas várias infidelidades, também morre, e a então filha órfã do casal vai viver com uma tia pobre, que a manda trabalhar em uma fábrica de algodão. É uma clássica tragédia, conduzida implacavelmente rumo ao total declínio.

Romeu e Julieta (William Shakespeare, 1597)

Tipo de narrativa: Icarus

Romeu e Julieta é comumente considerada uma tragédia por conta da descrição do próprio Shakespeare, mas, quando a analisamos, a história se alinha mais à forma de Icarus: ascensão e declínio. Afinal, o menino precisa encontrar a garota e se apaixonar antes que ambos se percam. O pico romântico acontece quando se passa cerca de um quarto da peça, na famosa cena da varanda, na qual eles declaram amor eterno um ao outro.
É uma descida morro abaixo a partir daí. Romeu mata Tybalt e foge. Logo, o plano de Friar de forjar a morte de Julieta traz um pequeno salto de esperança à trama, mas, depois que a jovem bebe a poção, nada consegue evitar o final trágico.

Orgulho e Preconceito (Jane Austen, 1813)

Tipo de narrativa: Homem no buraco ou Cinderela 

A primeira metade do romance de Austen traz um animado baile (embora comedido), gracejos e propostas de casamento cômicas. como a do vigário Mr Collins. As coisas ficam mais sombrias quando Bingley parte, e Elizabeth começa a se estranhar com Darcy (mas por um mal-entendido, obviamente).
O sentimento do romance entra em um território decisivamente negativo depois da proposta desastrosa de Darcy, alcançando seu ponto mais baixo quando Lydia foge com o desonesto Wickham. Isso, claro, serve de oportunidade para Darcy provar a que veio, o que ele faz com dignidade e segurança. Assim, ele ganha o coração de Elizabeth e assegura um comedido final feliz, em que todos estão ligeiramente mais sábios do que antes.

Frankenstein (Mary Shelley, 1818)

Tipo de narrativa: Oedipus

O influente romance de Shelley narra a lamentável vida de Victor Frankenstein e sua Criatura. O primeiro narrador é o capitão Robert Walton, que, em cartas à sua irmã, conta o enredo de Victor - que aparece em primeira pessoa no texto. Num certo ponto, a Criatura assume a narrativa, transformando o romance em uma história dentro de uma história dentro de uma história. Esse é o momento de respiro da trama, que em geral segue uma trajetória descendente desde o início, com a descrição de Victor sobre sua vida feliz, até o surpreendente final.
Em um momento crucial, a dois terços do romance, a Criatura oferece a Victor uma saída - fazer para ele uma companheira feminina. Mas Victor recusa. Desse ponto em diante, seu destino está selado. "Lembre-se, eu estarei contigo na noite de seu casamento", ameaça a Criatura. E assim o faz.

O Patinho Feio (Hans Christian Andersen, 1843)

Tipo de narrativa: Complexa

Embora seja curta, a famosa fábula de Hans Christian Andersen tem estrutura complexa. Ela incorpora tipos narrativos de "dois homens no buraco" (ou melhor, um pato no buraco) dentro de uma narrativa de "ascensão". Ou seja, as coisas melhoram ao longo da história para o patinho, mas há flashes de luz e escuridão no caminho.
Ele sai do ovo (oba!), mas sofre bullying por ser diferente (ahhh). Ele descobre que pode nadar melhor que os outros patos e sente um indício de afinidade com o grupo de cisnes em sobrevoo (oba!). Em seguida, quase morre no inverno gelado (ahhh). E finalmente torna-se um cisne, de uma forma completamente prevista desde o início. A ideia é essa, claro: "Nascer num ninho de pato não tem importância se ele vem do ovo de um cisne". A história termina com a pontuação mais alta, aquele que sempre foi um cisne exclama que "nunca sonhou com tamanha felicidade".

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