O uso da migração como plataforma política não é novidade. Tampouco
foi inventado por Donald Trump nas eleições americanas de 2016, quando o
então empresário prometeu expulsar os imigrantes ilegais dos Estados
Unidos e erguer um muro na divisa do país com o México. Em Roraima, a
chegada em massa de venezuelanos nos últimos meses transformou-se na
principal pauta das eleições de 2018. Travando
embates, candidatos sugerem soluções à crise que afeta o estado
brasileiro menos populoso e que figura entre os mais pobres do país.
Aliados na base do governo federal, o senador Romero Jucá (MDB) e a
governadora Suely Campos (PP) estão no centro da disputa. Enquanto Jucá
propõe cotas para a entrada de venezuelanos, Campos defende o fechamento
da fronteira. Nos últimos dias, o governo federal elevou a
retórica contra o governo local. Em visita ao Estado nesta quinta-feira
(23/08), o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, negou o envio
de mais verbas a Roraima e criticou quem "tira proveito" da tragédia
criando disputa política. Entre 2017 e 2018, 127 mil venezuelanos cruzaram a fronteira em Pacaraima, no norte de Roraima. Logo após ataques de brasileiros a venezuelanos registrados
na cidade no último sábado, Jucá, que tenta se reeleger ao cargo pela
terceira vez, propôs ao presidente Michel Temer um projeto de lei para
regular a entrada de venezuelanos por meio de cotas, alterando a Lei da
Migração. A legislação foi aprovada, praticamente por unanimidade
(43 votos a favor, quatro contra e uma abstenção), pelo Senado em abril
de 2017 – inclusive com voto favorável do próprio Jucá. Sancionada em
maio do ano passado, a nova lei passou a valer em novembro. Menos de um
ano depois, está no centro da polêmica atual. "De certa forma,
todos os candidatos locais têm tentado se apropriar da pauta e
apresentar soluções. Infelizmente é um tema sobre o qual as pessoas têm
pouco conhecimento, daí se limitam a dizer que a Lei da Migração não
presta", aponta João Carlos Jarochinski, coordenador do curso de
Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Limitar
a entrada de estrangeiros por cotas, como propõe Jucá, não está nem
perto de ser uma solução, aponta Jarochinski. "As pessoas vão buscar
outros mecanismos para entrar, teremos problemas, contrabando, coiotes e
tráfico humano. Os venezuelanos vão continuar entrando de forma
irregular, e o Estado brasileiro vai perder o controle da situação",
alerta. O professor, no entanto, não duvida da destreza de Jucá. "Ele é um
cara que até conseguiria reunir o Congresso em meio à campanha para
aprovar um projeto de lei como esse. Mas a questão é a eficácia",
sublinha. Para o especialista, fechar a fronteira, como sugere
Suely Campos, que também tenta a reeleição, é outra solução inviável. A
medida chegou a se tornar realidade por 17 horas, após um juiz federal
suspender, em decisão liminar, a entrada de migrantes venezuelanos no
Brasil no dia 6 de agosto. "A questão do fechamento da fronteira é
impossível não só pelos tratados internacionais, mas por se tratar de
uma fronteira seca, sem obstáculos naturais", argumenta Jarochinski. "É
mais caro você fechar uma fronteira do que integrar [os migrantes ao
país]. Esse é um ponto que parece que as pessoas não entendem." Índios, energia e migração Mirar
um "inimigo externo" parece ser praxe na campanha eleitoral em Roraima.
Em eleições anteriores, os vilões eram os índios Waimiri-Atroari. Por
cruzar terra indígena, um trecho da BR-174, única rodovia que liga Boa
Vista a Manaus, permanece fechada para veículos particulares entre as
18h e as 6h. Nesse horário, passam por ali somente veículos oficiais e
ônibus comerciais. Na campanha de 2014, algumas candidaturas
utilizaram o discurso de que o fechamento da estrada inviabilizava o
agronegócio, prejudicava o comércio e isolava Boa Vista do resto do
país. Este ano, a questão indígena voltou à pauta de discussão
política quando o governo federal voltou a ventilar a ideia de
interligar Roraima ao Sistema Interligado Nacional (SNI) de geração e
transmissão de energia elétrica. O estado é o único que depende de
energia externa, no caso, da Venezuela. O projeto está parado
desde 2011. O problema é que a linha de transmissão de energia conhecida
como Linhão do Tucuruí teria que cruzar terra indígena para interligar
Boa Vista a Manaus. As 30 comunidades indígenas que vivem na área de
reserva pedem que a obra seja desviada. "Os candidatos agora
pegam essa temática e tentam construir uma pauta positiva para ganhar
duas vezes. Falam ‘não podemos depender da Venezuela em segurança
energética' e conseguem atacar outra pauta que também sempre foi
problemática aqui, a do relacionamento do indígena com o não indígena",
explica Jarochinski. Ele salienta que não há ligação entre as
temáticas energia e migração. "Há diversos apagões. A Venezuela e os
venezuelanos inclusive reclamam muito que estavam com apagão lá e a
gente [Roraima] recebendo energia", aponta. Para Gustavo Simões,
também professor do curso de Relações Internacionais da UFRR, migração e
energia são assuntos diferentes, mas que têm implicações comuns. "A
maioria das pessoas têm saído da Venezuela por uma total incapacidade
econômica de se sustentar em um país onde não há insumos básicos e falta
tudo, inclusive energia elétrica", afirma. Em relação à negativa
indígena de permitir a ampliação da linha de distribuição de energia do
lado brasileiro, Simões lembra o trauma da construção da rodovia
BR-174. "Muitos indígenas foram mortos, nem sempre de forma
direta, mas pelas doenças que os trabalhadores da obra trouxeram. É um
povo que tem muito receio de outra grande obra cruzando a reserva",
aponta. Dependência do governo federal O
cerne da questão parece ser a histórica dependência de Roraima do
dinheiro do governo federal. O Estado tornou-se independente apenas em
1988 e possui uma economia pouco dinâmica, com o servidor público
sustentando a economia local. Diante da precariedade na região e
da deficiência estrutural, uma parcela significativa da população
defende e apoia ações de fechamento de fronteira e restrição dos
serviços públicos oferecidos a estrangeiros. Simões aponta dois
usos políticos diferenciados da mesma questão. O primeiro, segundo ele,
seria a tentativa do governo estadual de chamar a atenção do resto do
país, muitas vezes, inclusive, inflando dados. "De certa forma,
isso traz uma importância para Roraima que o estado nunca teve.
Espera-se, assim, que se tenha um maior investimento e transferência de
recursos federais”, explica. O outro uso político da crise
migratória seria inflamar o discurso de fechamento de fronteira, algo
considerado inconstitucional. "Ao se adotar esses pronunciamentos
inviáveis do ponto de vista jurídico, você está se dirigindo a uma
população e dizendo o que ela quer ouvir. A governadora está falando
para ambos os destinatários [governo e população]", analisa. Experiência da migração haitiana Em
2010, também ano eleitoral e que marcou o início da migração haitiana
para o Brasil, na fronteira do Acre enfrentou-se problema semelhante ao
hoje enfrentado por Roraima. "Passados oito anos, o Brasil não
conseguiu modernizar sua estrutura migratória", critica César Augusto
Silva da Silva, professor de Direito da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul (UFMS), especialista em refugiados, direitos humanos e
migrações internacionais. "Não adianta só modernizar a
legislação, tem que construir estruturas para receber essas pessoas. O
Brasil está improvisando do mesmo jeito que improvisou no Acre há oito
anos", completa. Segundo ele, o que ocorre agora é fruto de uma
má gestão histórica do problema, já que a questão migratória nunca foi
tratada como prioridade do país, mas sempre como problema secundário. "A
solução mais fácil é sempre não lidar com o problema. E qual a sugestão
para não lidar com o problema? Construir um muro e fechar a fronteira",
finaliza.
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