Caixa 2 deveria ser punido com mais severidade

 
Para conseguir combater de maneira mais eficiente o financiamento ilícito de campanhas políticas - exposto de maneira generalizada com as delações da Odebrecht na Operação Lava Jato - o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) precisa de "mais auditores e menos juristas".
A afirmação é do cientista político alemão radicado no Brasil Bruno Wilhelm Speck, professor da USP e especialista em corrupção e dinheiro na política.
Ele afirma que o combate às práticas de corrupção reveladas pela investigação - o pagamento de propinas e as doações ilegais a campanhas políticas - só pode ser feito com um cruzamento de dados mais eficiente sobre o dinheiro declarado por políticos e partidos e com punições mais duras para crimes como o caixa 2.
O caixa 2 é um registro paralelo, ilegal, que permite que empresas movimentem recursos não contabilizados - e evitem a incidência de impostos sobre estes. O dinheiro no caixa 2 pode ser usado para financiar vários tipos de atividades - incluindo campanhas eleitorais e subornos.
Speck se diz pouco otimista com o futuro das reformas política e eleitoral no Brasil, após as últimas revelações de executivos da Odebrecht, que culminaram na abertura de inquérito contra oito ministros, 63 congressistas e três governadores.
"A gravidade das acusações e o envolvimento da elite política é tão grande que a capacidade de reagir, no sentindo de modificar e corrigir a legislação eleitoral, é muito pequena", afirma, acrescentando que preferia não comentar detalhes específicos das delações.
Confira os principais trechos da entrevista:
O combate ao financiamento de campanha ilícito, o popular caixa 2, tem melhorado no Brasil em vista dos últimos escândalos?
Wilhelm Speck - O que realmente melhorou nos últimos anos é que o TSE agora começa a cruzar os dados da prestação de contas dos candidatos com os dados com a Receita Federal, mas de forma muito tímida ainda. Quem analisa os dados percebe enormes contradições entre as informações prestadas pelos candidatos dentro de um próprio partido. Um diz que recebeu um valor do partido que o partido não registra e por aí vai.
O TSE avançou um pouco, mas poderia avançar mais em cruzar esses dados e os legisladores deveria ser mais severos em punir informações contraditórias na prestação de contas das campanhas.
Até onde sei, a punição até agora é corretiva: o candidato que não declarou um valor na prestação de contas corrige o erro e, em alguns casos, tem que pagar uma multa. 
O que o TSE faz é avaliar se esse valor não declarado poderia ter levado o candidato a ser eleito, o que é uma hipótese muito difícil de responder de forma razoável.
Uma das punições que não vi acontecer ainda é que a prestação de contas incompleta, quando o montante envolvido é relevante, leve à cassação de mandato. Acho que isso é o mínimo que tem que acontecer para que os políticos levem a prestação de contas mais a sério.
Atualmente, não registrar algumas doações junto ao TSE é a saída preferida dos acusados, porque o caixa 2 é um delito de menor gravidade penal. E o delito da corrupção é mais gravemente punido.
Então o caixa 2 acaba sendo um refúgio relativamente cômodo, o que não é um bom sinal para a legislação. Se a saída para todos os acusados for confessar que houve caixa 2, parece que esse caixa 2 não está sendo enquadrado pela lei eleitoral como deveria.
Em entrevista, o ministro do TSE Gilmar Mendes disse que o caixa 2 precisa ser "desmistificado" e que "não necessariamente significava abuso de poder". Você concorda?
Speck - Bom, se um membro da Suprema Corte no Brasil diz que a não obediência à lei é de pouca gravidade, não tenho mais palavras. É tão absurdo que nem tenho mais o que comentar.
O que você nota de diferente na maneira como outros países lidam com casos como estes?
Speck - Na França, dois candidatos à Presidência, Marine Le Pen e François Fillon, estão sendo investigados por abuso de recursos públicos (Le Pen, porque sua chefe de gabinete teria recebido como assistente parlamentar enquanto trabalhava no seu partido, a Frente Nacional. Fillon, porque teria pago a mulher e dois filhos como assessores parlamentares sem que trabalhassem).
Na Alemanha, o partido da candidata de direita Frauke Petry é investigada pela possibilidade de ter mentido sobre o financiamento da campanha de seu partido, a AfD. Essas investigações pesam tão fortemente sobre as candidaturas que elas sofrem em relação ao seu apelo eleitoral. Ser investigado por irregularidades com o dinheiro público é percebido como um grave problema para o candidato. O que aparentemente não é o caso no Brasil.
Acho que isso tem a ver com a falta de severidade da punição e pronunciamentos como esse de Gilmar Mendes que você citou. Se o representante do órgão máximo responsável pela adjudicação de transgressões da lei diz isso, não se pode esperar nada do cidadão comum.
Quais seriam as medidas mais importantes a tomar para acabar com práticas de corrupção na política como as reveladas pela Lava Jato?
Speck - A medida principal é aumentar a severidade da punição para casos como o caixa 2 e a não transparência na prestação de contas.
A segunda seria uma maior sofisticação na investigação das contas dos candidatos. O TSE precisa de mais auditores e menos de juristas. Há hoje jornalistas que provavelmente têm mais habilidade de analisar e processar os dados do TSE do que o próprio TSE.
A proibição de doações de empresas para campanhas políticas, determinada pelo STF em 2015, pode de fato reduzir casos de corrupção e favorecimento de empresas?
Speck - Sempre me manifestei contra a proibição completa do financiamento privado, não por princípio, mas pela dificuldade de implementar essa reforma. Sempre achei que seria melhor diminuir isso gradativamente e aumentar a fiscalização e a sanção das irregularidades. Não foi isso o que foi feito na última reforma.
O que seria uma maneira de fazer isso gradativamente?
Speck - Se o legislador quer diminuir o financiamento privado e aumentar o financiamento público nas eleições, recomendo pensar na distribuição dos recursos e de implementar regras que levam em conta mais o mercado político.
Atualmente, os recursos são distribuídos aos partidos por dois princípios questionáveis. Um é o da equidade: uma pequena fatia do fundo partidário e do horário eleitoral é distribuída igualmente aos partidos. Isso dá uma vantagem aos micropartidos porque eles recebem proporcionalmente mais recursos do que votos.
E o segundo princípio de distribuição é a proporcionalidade. Então os partidos recebem mais conforme os resultados que tiveram nas últimas eleições. Mas isso congela o sistema partidário. Quem teve muito recurso e provavelmente votos na última eleição continua tendo. Esses princípios não levam em conta a popularidade dos partidos no eleitorado atual.
Em alguns países, como o Canadá, há um sistema que aloca os recursos de acordo com a aprovação dos partidos. O governo reembolsa o cidadão que fez a doação.
Nos EUA, há o sistema de matching funds: a cada US$ 100 que um doador privado deu a um partido, o Estado paga mais US$ 100.
E também há outro sistema em que o cidadão recebe um tipo de vale eleitoral, que pode destinar a partidos políticos.
Estas três modalidades seguem uma linha de distribuição dos recursos públicos que leva em conta o mercado político, ou seja, o apelo político que os partidos têm junto aos cidadãos.
Se os partidos não têm capacidade de convencer os cidadãos a fazer pequenas doações, o Estado não complementará recursos. 
O que as empresas ganham exatamente ao fazer doações para congressistas no Brasil?
Speck - O primeiro benefício é mudar a composição do Legislativo para ter parlamentares eleitos que estão mais próximos dessa empresa, e não de outras que doaram menos a outros parlamentares.
O segundo benefício é acesso. Quando a empresa vê alguma lei ou reforma de seu interesse sendo discutida, o fato de ela ter feito doações significa que ela tem um motivo para solicitar que ela tenha acesso privilegiado ao parlamentar para levar suas preocupações com processos legislativos em andamento.
E o terceiro seria obter benefícios concretos para a empresa de forma irregular em processos licitatórios ou legislação.
Ou seja, primeiro a empresa consegue influenciar a composição do legislativo, depois, pode decidir com quem os legisladores conversam para orientar o processo legislativo e, por fim, tem a corrupção de fato.
E no caso das doações a presidenciáveis?
Speck - Em uma pesquisa, verificamos que os valores de doações de empresas para eleições presidenciais nos últimos anos estão aumentando no Brasil e, para eleições legislativas, diminuindo. Mas ainda não sabemos se isso tem a ver com a eficiência das campanhas presidenciais e ou com um maior foco das empresas em financiar candidatos à Presidência para garantir boas relações com o futuro governante.
As empresas geralmente têm um dilema: ou apostam tudo em um candidato ou financiam todos os que têm uma razoável chance de ganhar. Se elas quiserem ter mais influência sobre o processo eleitoral, escolhem o primeiro caminho. Se querem garantir que terão influência sobre o governante seja quem for, precisam diversificar as doação.
Observamos que quanto maior a empresa doadora, mais ela escolhe a segunda estratégia. E em outros países, como a Alemanha, esse comportamento é o mesmo.
Falando de outros escândalos de corrupção, como o mensalão, você chegou a dizer que as investigações trariam mudanças positivas para o Brasil. Qual o impacto que a Operação Lava Jato pode ter no combate à corrupção?
Speck - Eu já fui mais otimista em relação a isso. A gravidade das acusações e o envolvimento da elite política agora é tão grande que a capacidade de reagir, no sentindo de modificar e corrigir a legislação eleitoral, é muito pequena. 
Na elite política, aqueles acusados e investigados parecem mais preocupados em minar as acusações a eles do que em corrigir o sistema para evitar falhas no futuro.
Não estou vendo agora muita gente discutindo reformas nas regras de licitação de obras, na composição de conselhos ou na indicação de cargos em comissões, nem discutindo a mudança da legislação eleitoral, introduzindo punições mais severas.
Estes seriam debates que me deixariam mais esperançoso em relação aos resultados positivos a longo prazo desta investigação. Mas não estou vendo. O debate sobre a reforma eleitoral gira em torno de lista fechada, de outras coisas que não tem a ver com o dinheiro que vai para as campanhas.

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